TEMPESTADE – 43
Rangel Alves da Costa*
Dona Querência estava morta, disso não havia como duvidar. Mas se a velha senhora havia passado dessa pra melhor, se realmente conseguisse tal intento, como seria possível ouvir a voz dela dizendo coisas tão pertinentes, parecendo conversa de gente viva?
No estado que estava, a mocinha Inácia não tinha condições de se aprofundar nessa ou noutras interrogações. Sua vontade mesmo era de abrir a porta e sair correndo dali, se debandar mundo afora, correr sem destino pra fugir daquela medonha situação. Pra qualquer norte que pudesse fugir seria muito melhor do que continuar ali. Cadê agora as asas que tanto sonhou, cadê o dom de viajar em pensamento que sempre quis ter, cadê o poder de bater o dedo e ir morar numa nuvem?
A menina sonhava demais com tudo isso, mas agora, mocinha diante de dolorosa realidade, desesperada, sem poder abrir a porta nem ouvida ao gritar, tinha certeza que a realidade da vida era muito mais difícil do que imaginava. E realidade cruel demais, pois ninguém merecia ter de suportar o convívio com uma mulher morta, bem ali, bem ao lado, e com todos os fantasmas que passam a povoar os vivos em situações como tal.
O problema é que não estava com medo de estar sozinha naquele breu todo com a defunta arriada na poltrona, não sentia nenhum temor em saber que estava dentro da mesma casa, zanzando por perto de uma senhora morta há instantes atrás. Nada disso temia, mas sim a dor da impotência, de não saber o que fazer, de ter que providenciar um montão de coisas e não ter condições de fazer nada.
A escuridão não deixava, a tempestade não deixava, todo mundo havia sumido, o mundo parecia ter acabado e somente ela ficado ali ao lado de uma defunta. Por vezes pensava ter enlouquecido de vez, ter perdido a noção de tudo, ter sido jogada num mundo onde só havia escuridão e medo, num pesadelo que não queria acordar.
O mínimo que tinha de fazer era anunciar a morte da patroa e tal anúncio certamente traria consequencias imprevisíveis. Mas antes desse espanto dos outros, teria que preparar o neto para receber o aviso, para receber a funesta notícia, teria que fazer o possível e até o impossível para que ele sentisse aquela perda como fato normal a que todos um dia teriam de suportar. Imaginar assim seria fácil, quando todos sabem que tudo que diz respeito à perda de um ente familiar provoca as reações mais inusitadas, ademais quando se trata ainda praticamente de uma criança.
E se a mocinha Inácia, naquele estado extremo de aflição e sem pensar nas consequencias, de repente abrisse a aporta da frente e saísse correndo e fosse cortando ruas, virando esquinas, entrando em becos, subindo e descendo ladeiras, em direção à sua casa, ainda encontraria sua família abrigada dentro de quatro paredes, embaixo de um teto?
Pelas bandas da casa dela a situação não era diferente dos demais lugares, da região inteira: a vida suportada com tantas lutas sendo destruída de uma hora pra outra, sendo devorada pelas águas, pelo vento, pela dor, pelo medo. As águas se avolumavam e corriam ferozes, sem respeitar altura de terreno ou dificuldade alguma, simplesmente seguindo adiante e levando, derrubando, destruindo quase tudo que encontravam pela frente.
Nas casas mais pobres, casebres e choupanas, onde houvesse um só buraco logo a correnteza começava a se formar. De cima, do telhado ou de qualquer cobertura, uma simples pingueira logo se transformava num verdadeiro chuveiro continuamente aberto e formando por baixo verdadeiras piscinas. Piso praticamente não existia mais, chão de barro havia virado lamaçal e em seguida transformado em buracos, verdadeiras crateras, com águas perigosas se acumulando.
Pelas frestas e buracos, debaixo das portas ou das fendas que se abriam a cada passo, junto com a água chegavam os estranhos viajantes das inundações, que eram animais mortos, cobras ainda vivas, ratos, gatos, cachorros, roupas, móveis velhos, sapatos, brinquedos, bonecas, panelas, livros, cadernos, frascos disso e daquilo, sacos e sacolas, sonhos desfeitos, vidas destruídas.
Por debaixo de uma porta já caindo os pedaços entrou um porta-retrato que logo foi reconhecido por um garotinho: “Mamãe, olhe quem veio nessa água visitar a gente. Tô vendo a Joaninha, o Juninho e sua família. Será que eles mandaram o retrato que é porque vão chegar depois?”.
Lá pelos lados do campinho de pelada de fim de tarde aconteceu algo totalmente inusitado. O areal, agora totalmente transformado numa lagoa que ia enchendo cada vez mais, recebia no seu leito as águas que transbordaram da Barragem de Cima, lugar onde ainda existiam muitos peixes. E eis que desnorteados cardumes iam ficando presos e se debatendo nas duas redes de náilon existentes nas traves. Como não havia bola para bater na rede, agora eram os peixes que ficavam prisioneiros desse jogo da natureza em fúria.
O único jogador que entrou em campo foi boiando por cima das águas. Um corpo que ninguém sabia de quem era, se era de homem ou mulher, novo ou velho, surgiu descendo de um barranco e trazido pelas águas bem para o centro do local de tantas brincadeiras, tantos chutes, dribles e vibrações, agora simplesmente uma lâmina negra que ia recebendo mais uma vítima daquela tragédia.
Na casa de Inácia, que ficava exatamente nas proximidades da Barragem de Cima, alguns peixes já haviam chegado até a cozinha. Quando o dono da casa alumiou o chão pra tentar pegar um com a mãe e botar na panela, uma telha caiu de cima e quase lhe acerta a cabeça. Em menos de cinco minutos o telhado da cozinha já estava completamente no chão. Noutro vão da casa, de mãos na cabeça e as mãos em oração, a mãe da mocinha pedia por tudo na vida que aquele restante de telhado não caísse nas suas cabeças.
E quanto mais ela rezava mais o vento zunia forte e os pingos de chuvas pareciam setas. E nesse momento a cumeeira começou a ranger, se fez aquele som próprio de destruição. E houve o mais desesperado clamor pela intercessão divina. Somente Deus para salvá-los da morte certa.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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