TEMPESTADE – 51
Rangel Alves da Costa*
E havia mesmo. Quase no mesmo passo dos meninos, dando tempo somente que a molecada se afastasse o suficiente para não ser atingida, o raio caiu sobre a árvore deitada entre o vão de entrada da escola e o portão.
Vindo de cima fininha e certeira, a descarga elétrica atingiu a árvore de tal forma que a mesma se partiu em instantes, esturricando troncos e galhos, fazendo surgir labaredas e fumaça em meio à tempestade. Ainda chovia, e cada vez mais forte, e o fogo passava em meios aos pingos grossos, numa paisagem bonita e amedrontadora. Era força da natureza contra força da natureza, agindo perante uma só causa e consequencia.
Se Tonico, teimoso e atrevido como era, ficasse realmente ali como queria a qualquer custo, nessa hora teria virado cinzas também, nem tanto pela força e gravidade do raio, mas pelas águas que tomavam conta de tudo e faziam de todo o arredor um verdadeiro fio descapado, o mais propício para produzir mortal corrente elétrica.
Mas Tiquinho, por essas intervenções que as forças superiores impõem nos momentos exatos, havia impedido que o mesmo ficasse ali e até puxado à força seu braço. Foi o próprio Tonico que observou, se pelando todo de medo e após observar ao longe o estrago feito:
“Essa foi por pouco. Quase que eu tava virando fumaça também. Mas olha que bagaceira ficou aquilo ali. Olha que tem tição espalhado até aqui, basta ver o cheiro e a presença da fumaça. Sempre soube que o danado do raio tinha muita força e era muito perigoso, muito destruidor, mas desse jeito nunca pensei não. E agora, o que vamos fazer?”.
“Por enquanto não vamo chegar nem perto, pois a gente não sabe se os efeitos do raio já acabaram completamente, mas daqui dentro de uns dez minutos vamos voltar lá e jogar pra fora aquela bagaceira de vez. E já vai ser tempo também do maluquinho chegar trazendo qualquer coisa pra professorinha. Por falar nisso, vamo lá dentro saber como tá a bichinha”, disse Totinha.
Encaminharam-se para o local e encontraram as meninas chorosas e ainda mais tristes. Aninha logo tentou justificar:
“Sempre ouvi os mais velho dizendo que a pessoa quando já tá perto de morrer dá sinal de vida, que está se recuperando, faz alguma coisa que é para os outros pensarem que está ficando boa, e depois fecha os olhos, dá o último suspiro e vai embora. E o meu medo maior é esse. Ela, que não falava mais nada de jeito nenhum desde que murmurou sem parar o nome do seminarista, abriu a boca pra dizer baixinho e num esforço danado que vocês saíssem de lá. Ela nem sabia nem podia saber que vocês estavam lá fora, perto do portão, mas ainda assim disse essas coisas. Será que foi o aviso que já está partindo, indo embora, morrendo, será que foi a sua última palavra? Agora ela não diz mais nada, não gesticula nem mexe com nada, apenas o seu corpo doente fica mexendo todinho, com um frio ou calor que não sei, que deixa o corpo pegando fogo e suando frio. Não sei não, meu Deus, mas ou damos logo um remédio a ela ou vai morrer daqui a pouquinho, sem demorar mais nada...”.
De tão comovidos com as palavras da amiga, os meninos abriam a boca sem conseguir dizer nada. Então, Tonico, sempre ele com seu sentimento de culpa, tocou no ombro de Murilo e chamou-o para um lado e disse: “Vamos sair por aí batendo nas portas até encontrar um remédio pra salvar ela?”.
E o outro respondeu, com a voz embargada: “Vou avisar os outros. Se daqui a cinco minutos Teté não chegar vamos enfrentar tudo e vamos encontrar seja onde for o remédio dela. Não tenho medo de nada, principalmente se é pra salvar nossa amiguinha. Vou avisar a eles e daqui a pouco a gente sai, mesmo que o tempo lá fora queira engolir a gente”.
Tiquinho era um dos mais encorajados desse meio, um dos mais preocupados também com a saúde da professorinha. Não imaginava, contudo, o que se passava na sua casa naqueles momentos. Na verdade, já sabia da enfermidade de sua mãe, do seu contínuo e crescente enfraquecimento que quase não a deixava levantar da cama.
Seu pai, mais de vez, já havia conversado sobre o grave estado de saúde de sua mãe. Mas parecendo acostumado com tanta melhora e piora, o levantar e deitar sem fim, o sorriso de vez em quando e de repente a dor estampada no rosto, o menino sempre achava que ela mais cedo ou mais iria se recuperar de vez.
Mas a partir daquela tarde/noite o estado de saúde da mulher, afetado demais pelas circunstâncias do tempo e pelo demasiado enfraquecimento do corpo, já mostrava claramente que ela não amanheceria com vida. O esposo desesperado, sem saber o que fazer com a mulher já quase defunta e a ausência do filho, pensou demais no que fazer e quanto mais matutava mais ficava em tempo de enlouquecer.
Correu apressado até o quarto, ficou uns dois minutos com as mãos grossas e rudes sobre a face da querida esposa, alisou-lhe a face como há muito não fazia, depois, com lágrimas descendo pelo rosto dolorido, beijou-lhe a face e saiu quase correndo, sem olhar pra trás.
Cortou a escuridão da casa feito um raio, abriu a porta que nem sentiu a lufada de vento quase o impedindo de se mover, ignorou os pingos cortantes de chuva, os relâmpagos, os raios, a escuridão mais tenebrosa, e se pôs a correr feito um alucinado. Iria de qualquer jeito buscar o filho Tiquinho para se despedir da mãe.
Correndo sem saber o rumo certo aonde ia, rasgou a camisa e de peito nu desandava no mundo com a disposição dos aflitos. Mas de repente seu passo apressado, veloz, não ia mais adiante, quanto mais tentava ir mais à frente mais ficava no mesmo lugar e um clarão se fez diante de si, num rompante, como nuvem de luz. Mazé, a querida esposa, sorria o mais belo sorriso do mundo.
Era o aviso, era a luz da confirmação, era a despedida. Ela estava morta. Ajoelhou-se, prostrou-se em meio ao aguaceiro e gritou todos os gritos de dor que alguém poderia gritar.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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