TEMPESTADE – 46
Rangel Alves da Costa*
Não muito distante desse vão em cujo cantinho molhado os pais da mocinha Inácia estavam recolhidos, e de tão apertadinhos um no outro pareciam um só, outra mocinha estava, numa casa de laje com um quarto em cima, ao lado de uma mesinha tendo diante de si um velho caderno e lápis. Somente a luz de uma lamparina, ainda que fraquejante, para não apagar no vento que insistentemente entrava pelas frestas e pelas fendas da janela disforme de madeira.
Como seria essa menina pobre, tão bonita e tão faceira, tão parecida com flor do campo e nada diferente da rosa do mais rico jardim, tão afeiçoada à manhã primaveril e sem nada dever ao entardecer na montanha, tão rude como a pedra lavada pela água do mar e tão atenta e sabida igual à ostra sentada na beirada das águas espumantes?
Teria que ser poeta para falar dessa luz escondida no túnel da vida, da pobreza, da dificuldade para viver, dessa estrela mais brilhante. Menina do esconderijo, da viela, da favela, da rua distante, do lugar onde ninguém acredita que exista tanta beleza. Mas ela estava lá, dentro do seu quartinho estremecido pelo medo diluviano, na laje onde enxergava a vida, em cima de uma verdadeira ponte de águas rolando por baixo.
Estava sozinha. Os pais haviam saído logo cedinho para trabalhar e só voltariam, se voltassem na hora costumeira, lá pra perto da meia noite. Sozinha em casa, uma construção com um vão em baixo e outro em cima, um quarto só dela construído em cima da laje, assim que o tempo começou a vomitar estranhezas ela logo correu para o seu lugarzinho, seu recanto de pensamentos, sonhos e viagens.
Namorava um príncipe encantado, um cavaleiro mágico que vivia de nuvem em nuvem montado num cavalo alazão, vaqueirando estrelas, catando, caçando as estrelas mais lindas, os astros mais brilhosos e pingos de sorriso da lua, guardando tudo numa nuvem imensa de algodão para presentear seu amor um dia. E ela vivia esperando por ele, sonhando com seu príncipe encantado, esperando que a qualquer momento ele batesse na janela do quartinho e dissesse que estava pronto para levá-la.
Mas naquele dia com certeza ele não viria. Até sabia que naquele momento ele não estava lá em cima passeando naquelas nuvens medonhas, negras, incansavelmente cheias de água e terror. Ele deveria estar em outro lugar, talvez bem dentro do céu, num lugar onde dizem que há um paraíso colhendo a flor mais bela para sua donzela. E quando o sol brilhasse novamente ou a lua passeasse brilhenta pelas noites enamoradas, ele daria novamente sinais de que não a havia esquecido, de que deixasse a janela entreaberta.
Naqueles instantes ele não viria. Não podia romper aquele negrume tempestuoso e aparecer. Por isso mesmo que ela ficava ainda mais triste. Porém uma tristeza diferente daquela sentida por a parte debaixo da casa já estar totalmente tomada pelas águas, com os poucos móveis completamente inundados, tudo parecendo já perdido diante de tanta lama e molhação. Diferente daquele temor por os pais ainda estarem fora de casa, sem saber quando retornariam e sem ao menos ter a mínima ideia do que se passava no seu lar naquele momento.
Por tudo isso quase não conseguia se concentrar em nada, pensar direito, muito menos escrever tudo que gostaria naquele momento. Verdade era que gostava de escrever quando o tempo estava nublado, chuvoso, ouvindo a chuva bater no telhado, os pingos fazendo a festa lá fora. Nesses momentos rabiscava um verso, escrevia o que lhe vinha à cabeça, produzia cartas imaginárias para o seu príncipe encantado, tecia pequenos textos que terminavam sempre com uma interrogação: Mas quando vou ser feliz assim?
Num esforço tremendo, quase não conseguindo enxergar direito nem a folha nem o caminho da ponta do lápis desenhando as letras, ainda assim escreveu:
“Chuva, chuvaral, chuvarada, até onde o vai o caminho, aonde leva essa estrada, com tudo molhado em mim, tudo molhado lá fora, tristeza chegando e alegria indo embora? E por que não mais o sol, não mais a nuvem que esconde o meu amor viajante, a lua que faz brilhar os olhos do meu amante, que nessa hora está longe, está muito mais adiante? E de repente tudo muito escuro, muito negro, muito nada em minha frente, nada do que esperava é mais presente. Queria caminhar agora, sair daqui, ir embora, voar pra qualquer lugar, com asas de vento e ferro, com força feroz e veloz, com vontade de chegar, chegar a qualquer lugar, lá onde meu amor vai estar. Deixei a janela aberta, deixei a porta encostada, afastei a telha de cima, fiz a parede sumir e meu amor não quer vim, meu amor diz que me ama, mas não me afasta dessa chama. Agora não, porque o mundo acabou, a vida acabou, tudo acabou, mas um dia vou renascer e encontrar o meu amor, aí não tem chuva nem temporal, nem vento nem vendaval, que impeça de correr, subir na nuvem e no céu, até encontrar você...”.
Escreveria mais, muito mais, mil folhas, se não ouvisse um toque na janela, alguém ou alguma coisa batendo na janela.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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