SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 1 de junho de 2011

TEMPESTADE - 23 (Conto)

TEMPESTADE – 23

              Rangel Alves da Costa*


Mesmo assustado, Zezeu estava são e salvo, para alívio dos pais e dos outros irmãos que logo saíram de seus esconderijos forçados após ouvir os gritos desesperados da mãe e o barulho do pai sacudindo camas e mexendo com paus.
Diante do ocorrido, da quase tragédia acontecida ali, Julião decidiu então que a família inteira, com exceção de Totinha que ainda não estava em casa, ficaria reunida no quarto do casal, ao menos até que o restante do telhado estivesse suportando, não fosse totalmente jogado pelos ares. Quando a casa estivesse completamente descoberta, entregue à força do tempo, só Deus sabe o que haveria de ser.
Quando Zezeu ouviu a mãe Gecineide dizer que daria tudo para que Totinha também estivesse ao lado deles, falou, num seu jeito devagar e pensativo: “Totinha não pode chegar não. A chuva não deixa e ela não vai parar tão cedo, e só pode parar mais cedo se o doidinho quiser...”.
“Que conversa é essa Zezeu? Você disse que a chuva não vai parar tão cedo, mas só pode parar se um tal de doidinho quiser, foi isso mesmo meu filho?”, perguntou a mãe, com o interesse bastante aguçado diante dessa instigante afirmação. Então o menino explicou a seu modo:
“A chuva é de Deus, o vento e tudo é de Deus, mas o maluquinho pediu tanto pra ser o dono da chuva ao menos por um pouquinho que a maluquice deu certo. E deu mais certo porque acharam que ele sofria muito nas mãos das pessoas e deram essa chuva a ele. Só que a chuva veio demais, o maluquinho achou bonito tanto relâmpago, ventania, trovão e água, que foi deixando assim mesmo. Mas se ele quiser a chuva vai parar, mas só que parece que ele não quer, não tá nem aí...”.
E foi a vez do pai, também interessado demais nessa história, perguntar: “E que maluquinho é esse que você fala meu filho, é alguém que a gente conhece?”. Prosseguiu Zezeu para responder:
“Não sei o nome do maluquinho não, mas sei que ele passa aí pela rua. É aquele que não atira pedra, mas tem gente que gosta de atirar pedra nele, bater e dizer coisas. Fica ali no banco da pracinha quietinho e vão lá mexer com ele. Ele não diz nada, só fica com raiva, mas agora é sua vez de descontar o que fazem com ele. Ele diz que a chuva é dele e por isso só vai mandar parar quando quiser. Estava cantando no meio da rua, embaixo dessa chuva toda, pois parece que nem o vento nem os pingos se importam com ele. Mas agora mesmo, nesse mesmo instante, tá tendo muito trabalho. É que ele tá fazendo de tudo pra salvar a vida da professorinha de Totinha, aquela mesma que ele fala tanto...”.
“Salvar a vida da professorinha, que conversa é essa meu filho, ela estará doente?”, indagou a mãe, já com ares de preocupação. “Tá mãe, tá muito doente. A professorinha de Totinha tá muito doente e até vejo ela deitadinha num canto, se contorcendo toda, fora de si...”.
“Mas o que ela tem meu filho, será que vai se salvar? Na sua cabecinha que vê tudo, será que não tá vendo se ela vai se salvar ou não?”, foi a vez do pai procurar saber. “É doença nova, doença de chuva, coisa muito estranha. Ninguém sabe direito o que ela tem, mas o maluquinho já foi pedir ajuda e agora mesmo está indo buscar um remédio, mas o problema todo é que ele achou outro problema sério pra resolver...”.
“Que problema foi esse meu filho? Pelo amor de Deus veja se consegue saber que problema foi esse”. Era a mãe, já em tempo de se acabar de preocupação. “O problema é com uma mulher que ele encontrou caída na frente de casa, já em tempo de morrer, agora tá vendo se salva ela”.
E a mãe rapidamente quis saber se ele podia dizer quem era, ao que respondeu: “Essa eu não sei não. Só sei que é uma mulher e está bêbada”.
A mulher caída no meio do tempo, na rua completamente tomada pela água, tendo o seu corpo embriagado refletido pelos clarões dos relâmpagos e açoitado pela força da ventania, não era outra senão Manuela, a mãe de Marilda.
Completamente bêbada, numa força que somente os embriagados às vezes encontram, se pôs de braços abertos no meio da acabação e bastou uma rajada mais forte para ser jogada ao chão. Ali estendida, sem ter forças para se erguer com a rapidez que a situação exigia, certamente morreria afogada.
Sorte de Manuela que o maluquinho Teté ia passando por ali e enxergou aquele vulto deitado, se debatendo nas águas, na correnteza que não mostrava nenhuma mansidão. E sorte mesmo, pois o maluquinho abdicou de cantarolar alegre, andando vagarosamente para cima e pra baixo, para apressar o passo, verdadeiramente correr, para tentar salvar a sua amiga Suniá, a professorinha adoentada demais.
Os pais de Teté moravam exatamente por aquelas bandas, numa região pobre da cidade, por isso mesmo muito mais abandonada pela administração pública e agora sofrendo todos os efeitos das negligências e omissões dos administradores. O lixo sempre acumulado pelas calçadas, becos e descampados, os bueiros sem ter conservação, as bocas de lobo entupidas, enfim, uma miserável infraestrutura que agora tornava aquela situação muito mais ameaçadora e perigosa.
Com os olhos que pareciam não ter problema algum para enxergar na tremenda escuridão, debaixo do temporal, o maluquinho logo avistou aquele corpo estendido e se movendo desesperadamente e a princípio pensou ser algum animal lutando para não se afogar. Chegou mais perto da cena e viu que era gente, percebeu que alguém erguia um dos braços pedindo ajuda.
Levantou Manuela, colocou-a nos braços e olhou ao redor para ver de onde ela tinha saído, de onde tinha vindo para ter feito aquela loucura toda e correndo o risco de morrer. E certamente morreria se providencialmente ele não estivesse naquela abalada diligência. Avistou a porta aberta, completamente arrancada da casa, e se dirigiu até lá sem pensar noutra coisa, sem ao menos querer saber se a casa era ou não daquela pessoa.
Com ela nos braços, caminhou apressado em direção ao vão aberto onde antes existia uma porta, mas uns cinco metros antes de chegar até lá sentiu algo muito estranho acontecendo. Um barulho terrível tomava conta da moradia e percebendo rapidamente o que estava prestes a acontecer, só teve tempo de recuar mais um pouco.
E a casa de Manuela, a mãe de Marilda, a abandonada pelo marido, a sofredora Manuela, desabou totalmente, como se fosse uma construção implodindo por explosivos, como castelo de areia ao arremesso das ondas. E agora, meu Deus? E o maluquinho Teté lembrou que também tinha um Deus.

                                                   continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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