SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 20 de junho de 2011

TEMPESTADE - 42 (Conto)

TEMPESTADE – 42

                          Rangel Alves da Costa*


Na mais completa escuridão, sentada com a cabeça abaixada numa cadeira defronte aonde a avó de Betinho descansava o silêncio dos mortos, e ainda chorosa, num desespero que não diminuía, Inácia pensou estar malucando de vez quando começou a ouvir uma voz muito parecida com a daquela mulher quando viva. O timbre era o mesmo, a rouquidão era a mesma, o jeito manso de falar era o mesmo.
“A minha viagem já tava marcada há muito tempo e desde muito que espero o trem chegar, mas só hoje, logo hoje que eu não queria viajar sem estar ao lado ou me despedir do meu netinho, do meu Betinho, é que ouço o danado do apito lá longe, vindo ligeiro por detrás das montanhas, faminto, cortando serras, passando debaixo do chão, só para chegar logo e me levar. Sabia que esse trem mais cedo ou mais tarde ia chegar, mas pensei que numa noite de lua ou numa manhã de sol, num dia bonito e de céu azul. Mas veja como são as coisas, pois bastou essa tempestade chegar e o trem se apressou em direção à minha estação. Não nego a você não, Inácia, de quem gosto muito e sempre confiei, mas quando ouvi bem ao longe um apito, depois mais outro e mais outro apito, e de repente tudo já estava presente demais, comecei a sentir uma dor danada no coração, o peito quase esbagaçar. Primeiro foi uma pontinha leve de dor, e tudo por medo de ser mesmo aquilo que eu sabia que chegaria. Depois o peito doeu um pouquinho mais forte, e isso porque passei a ter certeza de que era ele mesmo e não tinha mais jeito de não partir naquele momento. Depois o peito apertou ainda mais, muito mais, quando já tonta me veio a lembrança de Betinho e a certeza que ia fazer essa viagem sem ao menos dar um abraço de despedida nele. Talvez você não saiba o amor que sinto por esse menino e vou sentir sempre até onde o trem me levar. Não era somente avó, mas mãe duas vezes, pois as avós têm esse dom divino de ser mãe muitas vezes dos seus netos, bisnetos, tataranetos. E Betinho sempre foi tudo pra mim, sempre foi a razão de ainda continuar viva por tanto tempo, talvez esperando ele ficar maiorzinho para entender um pouco mais a realidade da vida. Mas o trem apitou e chegou sem ele estar aqui, sem ao menos eu saber direito como ele estava se sentindo debaixo desse dilúvio todo. Mas agora já sei como ele está. Fisicamente está bem, também está protegido, mas por outro lado está sofrendo muito e não por causa desse tempo desembestado, mas pela professorinha que está muito doente. Ainda não estou em condições de opinar sobre nada disso, mas do jeito que a coisa vai já estão colocando lenha na fornalha de um trem bem distante que é pra ele ficar pronto pra vim buscar ela também. Ela é tão novinha, tão doce, tão pura, que não merecia fazer essa viagem agora não, mas não sei qual vai ser o destino dela daqui pra frente. Só sei que o maquinista já está arrumando o trem e será preciso que impeçam que esse trem saia daquela estação. Sim, mas como eu ia dizendo, aí me chegou uma dor ainda mais forte, mais pontiaguda, mais avassaladora, e quanto mais a dor apertava mais o apito chegava perto, mais zunia em meus ouvidos, mais tomava conta de minha cabeça, até que não suportei mais e quando dei por mim já estava sentada num vagão muito escuro, muito silencioso, ouvindo somente o barulho da máquina nos trilhos e enxergando lá adiante uma luzinha que nunca chegava mais perto...”.
“E aí já estava morta, e aí já tinha morrido, e aí não tinha mais gente de voltar. Então por que está aí falando essas coisas?”. Era Inácia, nem imaginando que estava realmente falando com a defunta, vez que continuava completamente atordoada, com as mãos assanhando o cabelo, chorando, parecendo realmente enlouquecida. E a voz continuou:
“Estou aqui, mas já estou viajando, já estou seguindo pelos trilhos desconhecidos até chegar na também desconhecida estação. Mas estou aqui porque não podia descer de vez desse trem sem vim até essa janela falar com você, principalmente porque de agora em diante você tem que tomar conta do meu neto, do meu Betinho. Daqui em diante você vai ser como a verdadeira mãe dele...”.
Inácia deu um pulo e bradou: “Eu tomar conta dele, ser como se fosse a mãe dele, mas como, como pelo amor de Deus, se agora que a senhora morreu não tenho mais emprego, não tenho mais como ganhar um tostão, não posso me manter, não posso nada? Por que eu iria tomar conta dele pra fazer o bichinho sofrer também? Eu sei me virar sozinha, sei passar necessidade e até ficar com fome, mas o coitado do rapazinho? Como, pelo amor de Deus, uma pessoa que não tem nada na vida pode trazer uma responsabilidade tão grande assim de graça, do nada, só porque a senhora morreu?”.
Parecendo totalmente inconsciente, a mocinha zanzava de um lado a outro na sala escura, ainda chorando, ainda atormentada com aquilo tudo que estava ocorrendo e nem ao menos se dava conta do que realmente era. Mas a voz da falecida continuou:
“Talvez você sempre tenha me julgado como uma pessoa ruim, fona demais, que não fazia graça com dinheiro nem desperdiçava moeda em nada. Aliás, morri com a certeza de que todo mundo me achava assim. Mas diga Inácia, diga com toda sinceridade, quem merecia ter qualquer ajuda minha? Não gastava à toa porque sabia o quanto vale alguma reserva para um inesperado, para um momento ou outro de precisão. E porque não desperdicei tudo o que tinha é que pude deixar os estudos garantidos para o meu neto, pude assegurar que por enquanto não lhe falte nada, e também em ajudar aquela pessoa que vai tomar conta dele até que ele cresça e possa tomar rumo sozinho da sua vida. Por isso é que pensei também em você e pode ter certeza que não vai ficar na rua da amargura. A qualquer momento você vai ter uma surpresa e verá que não fui tão ruim assim. Agora tenho de ir porque o trem já tá chegando na estação. Diga a Betinho que...”.
E a voz calou de vez. Inácia correu pra buscar a lamparina na outra sala e ao retornar alumiou bem o local onde estava a morta, chegou mesmo a tirar o pano que encobria o seu rosto, mas só enxergou a feição opaca, num branco acinzentado, próprio dos mortos.

                                                     continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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