RECORDAÇÕES DE FOLHAS E VENTO
Rangel Alves da Costa*
Quando eu retornar, e um dia hei de retornar, certamente será em temerosa viagem, com medo de não mais encontrar quase nada daquilo que deixei. Lembro tudo que um dia deixei por lá, de cada pedra e cada canto, das cores do arrebol e da tarde e da força da ventania que zunia falando um nome.
Tudo irá parecer com a letra da música “Os verdes campos da minha terra”, mas com a certeza de que apenas o lugar será o mesmo, mas com outras paisagens e cenários, sem o mesmo ar que um dia respirei nem as folhas que passavam ao vento do meu entardecer.
Com efeito, diz a letra: “Se algum dia à minha terra eu voltar/ Quero encontrar as mesmas coisas que deixei/ Quando o trem parar na estação/ Eu sentirei no coração a alegria de chegar/ De rever a terra em que nasci/ E correr como em criança/ Nos verdes campos do lugar/ Quero encontrar a sorrir para mim/ O meu amor na estação a me esperar/ Pegarei novamente a sua mão/ E seguiremos com emoção/ Nos verdes campos do lugar/ Neste instante que vivo a esperar na minha grande solidão/ E nos sonhos eu consigo transformar o frio piso do meu quarto/ Nos verdes campos do lugar/ E revivo os momentos de alegria/ Com meu amor a passear/ Nos verdes campos do meu lar”.
Seria errônea pretensão minha que o tempo parasse a me esperar. Impossível tudo se a mão de ontem já deu adeus ao dia anterior e assim a vida se compraz em despedidas que não nos cabe interceder. O espelho é a prova maior que ontem deitamos com uma ruga a menos e hoje até parece que entristecemos ainda mais.
E, por que, então, pretenderia que o meu lugar tivesse parado no tempo me esperando retornar? Mas não quero isso não, pois não pretendo ter aquele mesmo maravilhoso mundo que deixei se eu mesmo mudei espantosamente. Seria minha terra, minha pedra, meu pó, minha poeira, meu graveto no chão que não me reconheceria mais. E a dor seria ainda maior.
Eu gostaria apenas de não encontrar num sopro o espanto de encontrar outro mundo dentro do mundo que ainda é meu. Não haveria dor maior do que o cimento imenso turvando o meu olhar em todas as direções que ele queria olhar; seria de cortar coração saber que não existe mais aquele local onde havia uma pedra, uma paisagem adiante, uma largueza no meio de tudo onde a ventania festeira passava.
Sei que é impossível ter ainda a minha pedra, a minha estrada de chão, o meu caminho com flores do campo e espinhos, o bicho do mato que passava correndo, o passarinho que voava solitário ou a revoada em busca do pé de pau. Não avistarei a andorinha fazendo seu ninho na cumeeira da casa de minha avó e nem o padre todo vestido de negro indo celebrar missa montado num jumento e com Deus, anjos e santos na garupa.
Haverá ainda lua, meu Santíssimo, de qual lado nasce o sol, qual a cor da manhã? E nem pense que falo demais porque me disseram que nem natureza há mais; colocaram muros em frente de cada paisagem e pintaram de marrom toda a vida e todo o mundo. As pessoas que choraram pelo seu lugar foram trituradas e hoje dizem que gemem por debaixo do asfalto.
Mas mesmo que não encontre mais nada do que deixei, ao menos lá estarei para mostrar que nem tudo conseguiu ser vencido. E poeta como sou, e muito mais quando essa dor aperta; e artesão como sou, e muito mais, quando essa imaginação desperta, trarei novamente o meu lugar ao canto da boca e do olho e ao vento direi que ainda existe.
E existe porque ninguém pode acabar com minhas doces recordações, minhas lembranças e relembranças, meu desejo imenso de reencontrar e ter ao meu lado meu lugar e minha vida de ontem que também é a de hoje. Mesmo em cima do nada mais existente, ainda assim estarei rezando o entardecer, orando a revoada azul, fazendo preces ao vento que passa e levas as folhagens consigo.
E nesse meu mundo que não existe mais, mas que insisto em tê-lo de volta e sempre comigo, erguerei os braços para o alto e num gritei direi: Meu lar é este e é como quero vê-lo e senti-lo porque ainda sou o mesmo!
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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