TEMPESTADE – 33
Rangel Alves da Costa*
Enquanto Manu e De Lourdes conversavam amenidades sobre homens e beijos, numa forma até eficaz de se fugir da realidade aterrorizante que rondava a primeira, lá dentro, na cozinha, Sinhá Culó ultimava os preparativos para dar como receita acabada o líquido grosso, de cheiro forte e poderoso, que era o remédio para tentar curar os males que tanto afligiam a professorinha Suniá.
Jogados num tacho com água fervente, os galhos, raízes, folhas e até frutos foram, aos poucos, mudando de cor e tomando consistência. A cada mexida que o velho Timbé dava com a imensa colher de pau, era como se aqueles pedaços de plantas fossem se desfazendo ainda mais e no seu lugar surgisse um caldo grosso, de um amarelo-escurecido, de um odor tão forte que parecia querer sufocar todo mundo.
“Nesse cardo e nesse cheiro é que está a força da infusão, do remédio. O certo era só tomar depois que drumisse uma noite no sereno, mai diante da situação não há como esperar, inté mermo pruque num há cuma cair sereno debaixo dum temporá como esse”, disse Sinhá Culó, enquanto futucava pelos cantos procurando outras coisas para completar a receita.
“E agora é só coar e já está pronto o remédio, mãe?”, perguntou Teté. Então foi a vez do velho Timbé se antecipar e responder: “Não, poi agora nóis vai ter de sair daqui que é pra sua mãe fazer o restante da beberagem. A gente num pode ficar aqui pra num dar errado o que falta fazer...”. ”Mas o que falta fazer?”, perguntou um intrigado Teté.
“Um dia vosmicê vai saber do segredo, mai hoje não. Só agaranto que num tem nada com coisa de bruxaria nem de colocá asa disso ou perna daquilo. O que vai ser colocado agora é apena a força do poder de Deus, poi num surte efeito nenhum, por mai grosso que seja o caldo, se o remédio não tiver a força do poder de Deus. Agora já vão saino que adespoi eu digo a hora de entrar de novo”. Foi o que revelou a velha senhora.
Quando pai e filho saíram da cozinha, rapidamente Sinhá Culó foi buscar no armário um frasco de água-benta, ali guardado, todo lacrado, desde muito tempo, trouxe também uma vela já usada e então começou uma ritual da mais pura devoção. Primeiro raspou boa parte da vela por cima do líquido grosso no tacho e depois derramou a água-benta. Enquanto mexia o tacho dizia o que havia decorado desde muito tempo:
“Eu te benzo pelo nome que te puseram na pia, em nome de Deus e da Virgem Maria, e das três pessoas da Santíssima Trindade, eu te benzo. Deus nosso Senhor que te cura, Deus que te acuda nas tuas necessidades. Se teu mal é quebrante, mal invejado, olhos atravessados ou qualquer outra enfermidade, se te deram no comer, no beber, no sorrir, no zombar, na tua formosura, na tua gordura, na tua postura, na tua barriga, nos teus ossos, na tua cabeça, na tua garganta, nas tuas lombrigas, nas tuas pernas. Que Deus Nosso Senhor que há de tirar, vem um anjo do céu, deita no fundo do mar onde não ouça galinha e nem galo a cantar”.
E ainda:
“Vento mau excomungado, vento maldito, vento que Nosso Senhor não deixou no mundo, Se é na cabeça, São Anastácio tira. Se é nos olhos, Santa Luzia tira. Se é no nariz, Santa Iria tira. Se é na boca, Nossa Senhora tira. Se é na orelha, São Francisco tira. Se é nos braços, santa Cruz tira. Se é no corpo, Senhor dos Passos tira”.
E por último:
“Senhor Jesus, coloca suas mãos benditas, ensangüentadas, chagadas e abertas sobre aquela que tanto sofre nesse momento. Mãos ensangüentadas de Jesus, mãos feridas lá na cruz, vem tocar na professorinha, vem Senhor, Jesus!”.
Na última palavra dita, deitou a colher de pau por cima do tacho, se benzeu, se deu por satisfeita. O remédio, o caldo agora marrom e milagroso estava pronto, bastando somente passar pela peneira, depois engarrafar e mandar sem demora para o seu destino. Não só a professorinha, mas qualquer um que tomasse daquela mistura de planta, água benta e resina de vela também benta, além das muitas orações e fé que entrelaçavam todo aquele processo de preparação, certamente estaria bem perto de alcançar a cura para suas moléstias. A não ser que...
A não ser que quem fosse colocar as colheradas na boca da doente não tivesse o cuidado de dizer as palavras milagrosas, os três passos para abrir caminhos, as três chaves para abrir as portas da saúde e espantar as doenças. Se a pessoa não soubesse ou não se lembrasse de dizer as três palavras nenhum efeito surtiria a beberagem, não passando de um xarope de gosto amargo e enjoativo.
“Teté, pode vim buscar o remedim da moça sua amiguinha. Vou botá num frasco bem tampadim que é pa num perder nem um tiquim dos poder. Leve tomem logo um cuié que é a medida de ela tumá direitim. Se ela num pude vosmicê vai derramano na boca dela. É treis coierada viu, só treis. Uma hora adespois mais treis, se aina precisá. Mai num se esqueça de dizê as trei palavra importante que tem de dizê antes de dar o remédio. As treis palavra são: Deus cure agora! Num se esqueça, toda as veiz que for dá o remédio tem de dizê Deus cure agora”.
E Teté nem se despediu de ninguém, passou pela sala correndo quem nem deu atenção às duas que perguntavam se ele estava doído saindo novamente debaixo daquele fim de mundo. Ao abrir a porta e alcançar a rua, com o negrume todo diante do olhar, ainda assim parecia enxergar tudo muito claro à sua frente, pois saiu em disparada rumo à escolinha.
Quanto mais corria mais cantava, mais dizia que ia salvar a professorinha. Só parou um instante quando ouviu alguém gritar pedindo socorro, já perto da esquina que dava para a rua da escola. Parou e ficou em pé por um instante, de modo a ter certeza que realmente ouvia uma voz em aflição.
“Quem estiver aí, por Deus me ajude!”. Era o seminarista Tristão, quase se afogando na imundície daquelas águas.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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