SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 7 de junho de 2011

TEMPESTADE - 29 (Conto)

TEMPESTADE – 29

                          Rangel Alves da Costa*


De Lourdes só tinha que concordar com o pai. Ela mesma era muito humana, de coração bondoso, sempre disposta a ajudar os mais necessitados. Também sabia que Manuela não ficaria ali para sempre, mas apenas até encontrar outro local para morar com sua filhinha. Inimaginável seria deixar a pobre coitada entregue aos desvãos do tempo, aos presentes sem laços de fita que a vida insiste em dar.
Enquanto a filha se pôs a reanimar a amiga, a dar tapinhas no rosto para ela tomar as rédeas da realidade, o velho Timbé se dirigiu até a cozinha para ver o que Sinhá Culó e Teté tanto conversavam, falando em plantas, raízes e folhas que dá sala dava pra se ouvir.
“O que é que ela tem mermo Teté?”, perguntou mais uma vez a mãe, remexendo pelos cantos, por trás do pote e até debaixo da mesinha da cozinha. E o maluquinho tentou explicar novamente os sintomas:
“É dessas doenças da chuva mãe, doença de tempestade. A senhora bem sabe que não chove aqui vai mais que um tempão, então tudo que é ruim se junta na terra, por riba do chão, e aí quando a água bate pra valer, quando eu mando chover e chove desse jeito, então começa a subir aquele vaporzão cheio de toda empesteação. Se esse vapor reimoso sobe num corpo que seja fraquinho, como é o da professorinha, aí é queda na certa, e doença braba, de entortar os nervos, doer cabeça, espalhar febre por todo lugar...”.
“Só pode ser a derribadeira”, disse o velho Timbé, que já estava fazendo parte das preocupações. E Sinhá Culó ajuntou:
“Se for mermo derribadeira entonce tá é muito ruim de se encrontá um remédio. As euvas mediciná que tenho tá tudo lá no quintá e com esse temporá tá difici de sair. Nem eu vou nem Timbé vai, que eu num tô doida de deixá ele sair debaixo dum tempo desse. E o pior é que lá fora deve tá num breu que ninguém arcança uma oiada adiante...”.
“Mas eu vou mãe, sei pra que lado elas tão e vou encontrar rapidinho. E a chuva não se preocupe com ela não, até porque se foi eu que mandei chover desse jeito, então a chuva é minha, e sendo minha eu não posso ter medo...”. Teté falou e já ia saindo em direção à porta dos fundos, quando foi puxado pelo braço.
Achando muito estranho essa conversa de ter mandado a chuva cair, de ser o dono da chuva, o pai perguntou: “E agora virou Deus foi? Num converse bestera dizeno que manda na chuva pruque pode receber castigo divino e ademai vosmicê sabe muito bem que num gosto dessa brincadera aqui. Chuva, mermo assim destrabelhada, afoitenta e derrubadeira é coisa de Deus e ele sabe o que faz. E num quero que vosmicê fique arrepitindo esse pecado de dizer quer mandou a chuva chover, tá ouvino num tá?”
E mais uma vez o homem da verdade, aquele que nem admitia mentira nem gostava de mentir, teve que tentar explicar tudo certinho ao pai, ainda que o velho quase desse um piripaqui e fosse dessa pra melhor:
“Mas pai, não posso estar pecando quando digo a verdade. Eu sei e todo mundo sabe que a chuva é de Deus, é mandada por ele, que faz encher tudo e estiar quando quiser. Eu sei que a chuva é dele, mas o que estou dizendo que quem mandou essa chuva toda cair fui eu. Tá ouvindo bem pai? Deus é o dono, mas fui quem mandei chover. E por que mandei chover e chover assim tanto, o senhor até pode querer me perguntar, então vou dizer logo: euzinho, esse aqui sim senhor, pedi, ajoelhado lá em cima da montanha e por diversas vezes, que ele, Deus, um dia me desse o direito de mandar chover bem forte que era pra castigar aquelas pessoas que gostam de me bater, me maltratar, de dizer que sou isso ou aquilo, quando todo mundo sabe que gosto de ficar quieto no meu lugar e não mexo com ninguém nessa vida. Aí pedi a ele pra me dar uma chance de fazer chover e ele deu...”.
Sinhá Culó ficava por trás do filho e fazendo gesto em direção ao esposo, apontando o dedo pra cabeça querendo mostrar que ele devia não estar bem. Estava nervosa a coitada com essa conversa, e com toda razão. Mas o pai não se conformava em ouvir aquilo que era besteira do filho e falou:
Mai Teté, se vosmicê achou que ia descontá em argúem tanta chuva acho que passou do ponto. Ói quantas pessoa num tão pagano sem merecer por sua causa, ói pra Manu e a fia dela, ói pra todos os outro que deve tá tudim sofreno essa hora, e ói pra nóis aqui tomem. E vosmicê acha que a professorinha lá da escola merecia tá morre mai num morre pru sua causa, diga homi de Deus, diga?”.
E o maluquinho baixou a cabeça e disse: “Pai não tá errado não. Mas a chuva é minha e se saiu alguma coisa errada eu mesmo tenho que consertar. E vamos começar logo pelo remédio da professorinha...”. Mas o pai não o deixou mudar de assunto e perguntou: “E quano essa chuva vai parar?”.
“Aí já foi outro pedindo que fiz junto com o outro pra ser dono da chuva. Se fui atendido em uma coisa, na outra certamente vou ser também, pois a chuva só haverá de parar quando De Lourdes arrumar um homem...”.
“Valei-me Deus, valei-me Santo Antonio, Santo Expedito e São Sebastião das Sete Chagas, valei-me todos os santos do céu que vamo morrer todo mundo dessa veiz. Me segure Timbé que vou desmaiar...”. E o marido correu pra acudir Sinhá Culó, que realmente estava prestes a desabar no chão.
“Mai meu fio, num podia ser outo pedido não, outa promessa? Se depender dessa daí a arca de Noé num vai caber todo mundo. Vosmicê bem sabe que ele já tá passada, já tá no caritó e nunca vai arrumá um homi de sã consciença que quera negoço com ela. É minha fia, é sua irmã, mai vosmicê tomem precisa saber que tem coisa que nem Deus dá jeito. Sua irmã arrumá um homi pa querer ela é uma dessa coisa...”, falava o velho Timbé quando foi interrompido com a chegada de De Lourdes, que já entrou na cozinha falando:
“Por um acaso ouvi o meu nome. Posso saber do que estavam falando?”. E Sinhá Culó, já mais refeita da quase vertigem perguntou à filha: “De Lourdes nunca mai tomou banho na chuva. Quano era mais mocinha gostava era muito de tomar banho nuinha na chuva. Num tá com vontade de tomar um banho nuinha lá fora não minha fia? Quem sabe num passa um rapaiz e óia procê...”.

                                                        continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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