SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 3 de junho de 2011

TEMPESTADE - 25 (Conto)

TEMPESTADE – 25

                          Rangel Alves da Costa*


Ao ver De Lourdes gritando e se debatendo pelo chão, tentando apagar a chama da vela que queria se espalhar pela roupa, Teté não teve dúvidas, correu até lá e jogou coitada da Manuela por cima da irmã.
Toda encharcada e pingando água, assim que a desmaiada se derramou de corpo e peso inteiro por cima da outra, a solteirona sentiu que estava se despedindo dessa vida. Sem fogo pela roupa, mas agora numa situação muito mais dolorida, tentava se mexer por baixo pra tirar ela de cima, mas não tinha jeito.
Observando aquela triste situação da filha, não vendo a hora dela morrer esmagada, o velho Timbé correu até o local e, juntando todas as forças que tinha, deu um solavanco na desacordada que ela foi parar num canto da parede, ainda parecendo completamente morta. Já a pobre da solteira, toda estatelada no chão, parecendo um saco jogado que se abre, tentava falar mas lhe faltava o ar, procurava se mexer mas não tinha forças, então começou a chorar convulsivamente.
A mãe, Sinhá Culó, ainda matutava, assustada, tremendo feito vara verde, sem saber o que realmente estava acontecendo. Tudo estranho e rápido demais, o filho que vai entrando de porta adentro carregando uma mulher nos braços e a outra filha se desfazendo toda para apagar o fogo da vela que havia caído, e ainda aquela mulher sendo jogada por cima da outra, numa cena de doer nos olhos. E o que vai acontecer agora, meu Deus, pensava a velha, enquanto se deixava cair pesadamente na poltrona.
Instantes depois, já se segurando pelos cantos pra ficar em pé, De Lourdes abriu a boca raivosamente e nem quis saber se o irmão tinha problemas mentais ou não:
“Quer me matar é seu desgramado, perdeu o juízo foi? Eu me acabando aqui no chão pra apagar a labareda que tava na minha blusa e ao invés de você correr pra ajudar, pra jogar água por riba, não, o que faz é jogar um purrão por riba deu. Fez isso pra me matar eu sei que foi, fez isso pra acabar com minha vida que já não vale nada, eu sei que foi. Todo mundo acha que pode fazer tudo comigo, me maltratar, me judiar, me desprezar, me fazer como se fosse uma pessoa imprestável. Mas tudo porque não tenho um homem, ainda não arrumei um homem pra me tirar daqui...”.
E começou novamente a chorar bem alto, se rasgando toda. “Deixe dessa conversa De Lourdes, deixe desse conversê sobre homem. Deixe de bestera que ninguém faz nada com vosmicê não. E olhe como fala com seu irmão e pruque vosmicê sabe muito bem. Se alevante daí e vá rezar de novo pra pedir perdão a Deus, anda, se avexe...”. Disse o velho Timbé, que depois se virou pra Teté e perguntou:
“E você Tetá, adonde arrumou essa muié que chegou com ela assim desacordada? Que eu saiba ninguém bota as cara na rua com o mundo se acabano assim desse jeito. Diga onde achou essa criatura desse jeito e pruque trouxe ele pra cá nos braço...”.
E De Lourdes, que já estava em pé, olhando para Manuela jogada no chão, porém sem enxergar nada de sua feição, ajuntou: “Isso mesmo pai, isso mesmo, mande que ele conte direitinho porque entrou aqui essa desconhecida nos braços. Será que arrumou namorada, será? E por que somente eu não arrumo um homem?” E começou novamente a chorar desesperadamente, sendo preciso o pai pegar um arreio de couro cru num canto e ameaçar tirar o couro dela todinho se continuasse com essa história de homem.
Como quem não estava nem um pouco preocupado com aquilo tudo ocorrendo à sua volta, Teté foi falando: “Vim aqui fazer um negócio muito importante e vou voltar logo, assim que mãe aprontar uma coisa que eu vou pedir, uma arrumação de urgência, de vida ou morte. Mas quanto a essa aí, a coitada tava esparramada e toda bebinha no meio do tempo, debaixo da minha trovoada. Quando peguei ela e fui levar pra dentro de casa novamente, então aconteceu o pior, pois a casinha da mulé caiu todinha de uma vez só. Se tiver gente lá dentro morreu todo mundo. E como eu tinha que vim pra cá e não tinha onde deixar a bebinha, então trouxe ela pra  não ficar abandonada no meio do tempo e depois saber o que vai fazer da vida, já que não tem mais moradia nem nada...”.
“Mas meu Deus, que tragédia terrível com essa pobre mulher, que assim desfalecida não sabe nem do ocorrido. Deixe-me pegar uma vela pra iluminar o resto e tentar reconhecer essa pobre desabrigada, órfã de lar e de tudo”, disse De Lourdes, agora num entristecimento justificado. E cuidadosamente foi virando o rosto da desmaiada, até soltar um grito; “Meu Deus, é Manu. Pai, é Manu, mãe, é Manu!...”.
E os dois velhos acorreram ao local sem acreditar no que tinham ouvido. Pediram para a filha iluminar o rosto para terem a certeza e então as lamentações e indagações tomaram conta dos dois: “Mas o que houve com Manu pra ela estar nesse estado, derribada desse jeito? E verdade, Teté, o que vosmicê disse sobre a casinha dela?”. E o maluquinho balançou a cabeça afirmativamente.
Sinhá Culó pediu que a filha corresse para a cozinha e preparasse uma xícara de café bem forte, o mais forte que pudesse existir, e sem açúcar, que era pra ver se ela despertava. Por lá todo mundo sabia que não tem remédio melhor pra acordar alguém de bebedeira do que um café bem forte.
Para atender ao pedido da mãe, a moça velha correu pro fogão da cozinha e logo chegou com uma xícara fumegando, com um aroma que tomava conta de tudo. Até o cheiro da bebida desaparecia perante aquele aroma gordo, pretinho, saboroso e, naquela situação, medicinal. Clarearam o lugar da boca e fizeram descer o café ainda meio quente, num esforço terrível porque o primeiro sinal que ela deu que estava voltando a si foi pra rejeitar a bebida forte.
Aos poucos foram despejando o restante. O efeito já estava sendo surtido, pois Manuela tanto engulhava como tentava abrir os olhos. Por fim, fez uma feição mais que horrenda e vomitou toda bagaceira que havia por dentro. Tiveram que se afastar rapidamente para não serem atingidos por aquela coisa gosmenta e fétida.
Quando já tinha colocado pra fora tudo que podia recebeu, ali mesmo onde estava e do jeito que estava, um balde de água despejado pelo velho Timbé. Balançou a cabeça assustada e quando abriu bem os olhos, num gesto medonho de espanto, o primeiro berro que deu foi pra perguntar: “Cadê minha casa, cadê minha filha?”.

                                                     continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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