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segunda-feira, 20 de junho de 2011

SINHÔZINHO MENINO (Crônica)

SINHÔZINHO MENINO

                   Rangel Alves da Costa*


Num tempo já antigo e recheado de saudados e relembranças, as divisões e hierarquias sociais geralmente eram de pouca valia no universo infantil. O meninote, o filho do rico dono da fazenda era amigo e companheiro de reinações daquele molecote da terra, o frangotinho barrigudo e filho do empregado do lugar, do vaqueiro ou feitor de um tudo.
Quando o latifundiário, o rico fazendeiro, coronel de terno branco e chapeu panamá, de charuto no canto da boca e bengala dourada de enfeite e sempre ao alcance da mão, residia praticamente no local, se amoitando nos luxos do imenso casarão, mansão de mais de mais de trinta quartos e salas para uma família tão pequena, o sinhôzinho seu filho, por mais proteção que tivesse, vivia na normalidade da meninice.
Nessa normalidade, deixava de lado suas roupas certinhas, engomadas e alinhadas demais, seus cabelos penteados na brilhantina e sapatos de couro importado, e se vestia de menino mesmo, de criança traquina, brincalhona, cheia de fogo e de vida, num infinito prazer, a correr e se danar pelos campos e descampados, brincando de tudo que a idade dava direito. Mas não fazia isso sozinho de jeito nenhum, vez que sempre na companhia amigueira e prazerosa do molecote filho do chão, cria do lugar.
O menininho filho do empregado da fazenda não era nem doido colocar os pés na entrada da casa grande, mas por desconto era dono absoluto de tudo o mais que se estendesse pelos cantos e recantos, todas as moitas, veredas e caminhos, árvores frutíferas, ninhos de passarinhos e tudo o mais que desse para correr, brincar, se esconder, fazer as reinações próprias da idade.
Eram amigos e muito amigos porque não havia como pretender negar a idade dos dois e nessa fase da vida as propensões aos mundos das fantasias, do ludismo por cima da terra e debaixo dos paus, doa motivações próprias nas crianças para brincar de se fartar. Ora, se a idade da brincadeira era aquela, não havia como proibir que o rico se juntasse com o pobre para brincar naquilo que nem se vende nem se compra, que é o prazer da existência infantil.
E o sinhozinho do casarão, ao perceber que o outro corria num cavalo de pau, brincava de fazendeiro com ponta de vaca ou ia seguindo pelos caminhos em direção às mangueiras e goiabeiras, dava o primeiro passo fora da casa e aí não tinha mais jeito. Só voltava quando iam procurá-lo, caía e machucava o pé ou joelho, quando estava completamente exausto. No menino da terra não, pois a roupinha rotineira e aos farrapos já era por demais conhecida, mas dava pra se assustar com a cor da roupa do sinhôzinho e o desgrenhamento do seu cabelo.
Mas um dia o senhor da casa grande resolveu se mudar com a família para a capital, deixando a suntuosa residência senhorial aos cuidados de alguns fiéis empregados, e só retornando ali nos fins de semana. A família em si só estaria de volta àquele ar puro e àquela aprazível vida bucólica na época das férias escolares, pois o sinhôzinho agora ia estudar em ambiente fechado e requintado para se formar doutor.
Ninguém viu, mas um dia antes da viagem, quando ainda deu tempo para as últimas brincadeiras, o sinhôzinho brincou normalmente, apenas sem soltar aqueles largos sorrisos e gargalhadas que cortavam o ar, num emudecimento que quase não dizia uma palavra sequer. Quando chegou o grito dizendo que a mãe estava chamando, nem se despediu do amigo, somente colocou-lhe um pequeno objeto no meio da mão e saiu, sem ao menos olhar pra trás.
No fim do ano, época das férias escolares, a família voltou para uma temporada na fazenda. O traquina do molequinho da terra louco pra rever o amigo e convidá-lo às diabruras e traquinagens, se surpreendeu ao perceber que o amigo não saía de casa para farrear. Olhou lá pra cima, para uma das janelas do casarão, e viu o sinhôzinho todo vestido de branco, cabelo penteado que chegava a brilhar, como se estivesse pronto para uma festa. Mas não, a família o havia impedido de colocar roupas comuns e sair pelos campos como um qualquer. Daí a lágrima correndo dos olhos e o aceno afetuoso ao amigo.
O menino do mato ficou entristecido e deu meia volta em direção ao seu mundo de reinações. Somente neste momento lembrou-se daquele pequeno objeto que meses atrás havia recebido das mãos do amigo e, sem jamais ter olhado o que era, guardou embaixo de uma pedra. Agora era o momento de saber o que era.
Seguiu até a pedra, revirou-a e colocou no meio da mão uma cruz dourada. Ouro puro, do maior quilate, era, e continuava sendo, aquela amizade sincera entre o sinhôzinho e o menino do mato.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

  

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