TEMPESTADE – 45
Rangel Alves da Costa*
Não durou muito e com as mãos já tendo se largado diante da força das águas e da escuridão que não permitia nem enxergar direito quem estava ao lado, os pais da mocinha Inácia se despediram em pensamento e fecharam os olhos para receber o abraço da morte. Contudo, cada um no seu lado, mas ao mesmo tempo, repentinamente teve seu braço puxado da correnteza e o corpo levantado e levado à terra firme, para um vão que continuava de pé.
Havia acontecido um verdadeiro milagre, mas qual força milagrosa para operar aquele duplo salvamento? A resposta estava na fé, na extrema fé em Deus. Por isso, quando, nos dois lugares ao mesmo tempo, a mesma mão foi estendida para operar o milagre do salvamento, não precisava mais tarda indagar quem teria sido aquela alma bondosa e corajosa que arriscou a própria vida para tirá-los da morte certa.
Salvos, embora ainda atordoados, nunca mais aquele casal ficou tão comovidamente juntinho como naqueles momentos posteriores. Um levado ao lado do outro, depois aos braços do outro, assim abraçados, bem juntinhos mesmo, silenciosamente ficaram em meio ao negrume do lugar e ao mundo tormentoso em volta.
Cada um queria falar alguma coisa, perguntar como seria agora a vida dali em diante sem um teto para servir de abrigo, indagar como foram parar ali, dizer que em meio àquela tragédia haviam tocado no dedo de Deus, se agarrado à sua mão, olhado e enxergado o rosto de Deus. Mas como seria essa imagem, essa face, esse rosto, senão a própria ideia da presença, a luz que surge nos olhos de cada um quando sente que Ele está bem ao lado, erguendo a mão, salvando?
Eis a face de Deus, tão visível sem ser vista, tão luz sem chama visível, tão chama sem ardência, apenas sentida tão fortemente que ninguém poderia jamais possuir presença igual. E o casal, naqueles instantes tão angustiantes, pôde ter esse dom daquela presença inesquecivelmente vida.
Depois de muito tempo abraçadinhos num canto molhado do vão onde haviam ido parar, ela chorando sem derramar lágrimas junto ao peito do esposo, e este todo angustiado por dentro e com o mesmo choro nos olhos rígidos, uma voz baixinha cortou o silêncio da palavra:
“E se Inácia chegar em casa e encontrar ela destelhada, com as ripas derrubada no chão e sem a gente lá, o que há de pensar, o que há de fazer, como irá ficar a bichinha?”, perguntou a mãe. E o pai respondeu:
“Se ela chegasse lá, se ela chegasse lá, mas duvido que alguém chegue em algum lugar debaixo dum tempo desse, cortando uma tempestade dessa. Só chegou a gente aqui e mesmo assim porque foi Deus que deu passo e caminho. Foi Deus que salvou a gente mulher, foi o bondoso Senhor que livrou a gente da morte certa. Como foi que você saiu daquela correnteza, quando já ia sendo levada? A mesma mão invisível que puxou você de lá foi a que me puxou também. E de quem foi essa mão milagrosa mulher, senão de Deus único e poderoso? Por isso mesmo se acalme que nós tamo nas mãos do Senhor. Se ele salvou a gente, se botou a gente aqui, é porque achou por bem que nossa hora não tinha chegado. E se continuamo vivo é porque ainda tamo protegido por ele. E é ele que vai guiar a gente daqui pra frente, por isso não se preocupe...”.
“Mas se a chuva não derrubar o resto a gente vai morar debaixo do tempo, à sorte de tudo que por riba vier ou aparecer. O telhado caiu de lado a lado e sorte da gente que não ficou debaixo daquilo tudo...”. Mas o marido, procurando confortar um pouco mais a esposa, foi logo dizendo o que pensava disso tudo:
“Deus não abandona os seus filhos, e a gente é a maior prova disso, você mesmo viu. Ele deixou a gente vivo foi pra reconstruir, fazer de novo e quem sabe melhor, o que foi destruído. O povo tem uma mania de dizer que quem tem o poder de fazer tanto bem, que é o criador e o dono de tudo, nada acontece sem ele permitir, não deveria deixar que tanta desgraça acontecesse, mas não é assim não. O próprio ser humano deveria pensar nisso tendo por base ele mesmo. Me responda mulher: Deus deu vida ao homem e colocou ele na terra pra ser justo e bom, não foi? E será que é tão difícil assim de seguir o caminho do bem e fazer aquilo que Deus espera do homem? Mas não, o homem sempre procura errar, complicar as coisas, pecar, fazer tudo errado, tudo contra o que Deus espera dele. E por causa desse homem que vive em pecado o mundo se transforma numa coisa ruim, num quarto e sala de pecado, não se salvando nem a família nem aquele que quer ser justo e bom. Agora é que surge a questão principal: como é que o homem transforma o mundo bom que Deus lhe deu numa coisa ruim e depois culpa o próprio criador quando as coisas desastrosas começam a acontecer?...”.
“Você tá certo marido, mas o problema é que o justo paga pelo pecador. Veja ao redor de onde a gente mora quanta gente pobre existe e que sempre mais sofre quando as coisas acontece...”. E o esposo procurou ser o mais claro possível:
“Lembra que a gente diz muito que os últimos serão os primeiros e Deus escreve certo por linha torta? Pois esses ditados cai muito bem nessa situação. Deus não está fazendo a gente sofrer acima da medida do que a gente pode suportar. E se a gente é forte e tem fé mais tarde será reconhecido, recompensado na medida do que merecer. Agora veja qual a força de superação que tem um ricaço, um milionário. Esse pode ter muito dinheiro, mas só isso, e isso é nada diante da verdadeira riqueza do homem. Quando o dinheiro acaba, o rico se vê sem saída, já o pobre encontra sempre uma porta aberta com aquilo que tem...”.
“Então você quer dizer que nós ainda vamos ter de volta nossa casinha?”, perguntou a mulher, encostando novamente a face molhada no peito do esposo. E ele respondeu: “Um palácio mulher, um grande palácio. Se Deus achar que devemo morar embaixo da lua, ainda assim será um palácio. Deus sabe o que faz mulher, é só esperar. E ele trouxe a gente de volta foi pra esperar o que a gente tem direito nessa vida. Um palácio, mesmo debaixo da lua será um imenso palácio...”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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