SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 4 de junho de 2011

TEMPESTADE - 26 (Conto)

TEMPESTADE – 26

                          Rangel Alves da Costa*


Manuela era conhecida da família do maluquinho Teté desde muito tempo. O velho Timbé e Sinhá Culó eram conterrâneos e amigos dos falecidos pais dela. Portanto, a conheciam desde criancinha, ainda nos braços da mãe, lá pelas bandas de Mundaréu, de onde todos tinham fincadas as raízes hereditárias.
Na verdade, todos conheciam o homem por velho Timbé muito mais pela sua aparência física alquebrada, o seu rosto com muito mais marcas do tempo do que a idade permitia. Não de todo um velho, mas já estava envelhecido demais pelas durezas dos trabalhos exercidos para sobreviver. No agreste, como se dizia por lá, a hora extra é feita todo santo dia, desde que o trabalhador se levanta até quando se deita para o sonho possível de qualquer noite.
Assim, era velho pelo desgaste físico, pelo esgotamento das forças, de tanto suportar sol e calor, desesperança e aflição, no seu ofício de tempos idos. Mas, diferentemente do amigo Dandão, este precisamente o pai de Manuela, Timbé continuava vivo. Aquele, já viúvo, havia morrido não fazia muito tempo, ali mesmo naquela cidade pra onde tiveram de migrar pra família não se acabar. Mas foi pior, muito pior.
Timbé e Dandão moravam na zona rural de um município mais na região agrestina. Mundaréu, o município onde viviam, como em tantos lugares espalhados pra cima e pra baixo, era marcado por uma sociedade dividida em classes. A classe rica, que geralmente não morava no lugar, era dona de quase todas as terras, das grandes fazendas, das imensas propriedades.
Da região mesmo, de raiz e solado fincado na terra, eram muito poucos, se podendo contar no dedo. Essa gente rica que ainda não tinha sido atraída pelos grandes centros urbanos, para os locais aonde os filhos iam se formar doutor, fazia parte de uma raça de herdeiros de pessoas de laço e estirpe que praticamente desbravaram aquelas regiões inóspitas e perigosas.
Na bala, na tocaia, na inimizade, na intimidação, no coito, atraindo a preço bom jagunços, pistoleiros e bandidos de toda espécie, os valentes que se sobressaíam aos desafetos iam tomando terras, invadindo tudo, delimitando territórios, jogando gado e outros bichos por cima da terra ainda suja de sangue e fazendo erguer a bandeira do poder coronelista.
Daí surgirem os latifúndios, os coronéis de terno de linho branco, chapeu e charuto importados e notas e mais notas rasgadas cegamente nos cabarés de francesas de araque atraídas das regiões vizinhas. E no amanhecer do dia seguinte, sempre contando com o silêncio conivente de suas esposas gordas e cheias de roupas, olhavam para o horizonte e nem sabiam até onde iam suas terras, quais as divisas do seu poder, até onde mandavam e desmandavam numa raça de homens valentes e destemidos que estavam por ali sempre à disposição.
Timbé e Dandão tinham o sangue desses valentes que davam suas vidas para resguardar os coronéis e suas famílias, proteger suas propriedades e velar pelos seus nomes e honra. O pai de Dandão, contudo, fora vítima dessa guerra sertaneja. Num entrevero com capangas do coronel Licurgo, ele, que era pago pra defender o coronel Expedito, recebeu uma bala na testa, mas não antes de ter ferido mortalmente dois inimigos. Quer dizer, inimigos porque estavam em lado opostos, mas todos conhecidos e ali mesmo das redondezas.
Mas os trabalhos destinados a Timbé e Dandão já tinham as feições de outros tempos. Com a morte dos grandes proprietários, daqueles homens que viam na posse da terra uma extensão de suas próprias vidas, os grandes latifúndios aos poucos foram dando lugar a outro tipo de propriedade, menores e destinadas geralmente ao plantio de lavouras e ao criatório de animais.
O problema é que antes, quando os grandes latifúndios predominavam, não havia nenhuma preocupação com produtividade, nem da terra nem do rebanho. As fazendonas imensas eram geralmente tomadas de mataria, com os animais sendo criados soltos, em meio às cobras e aos cactos agrestinos. Mas depois a situação mudou totalmente.
Os novos donos das terras, ainda imensas propriedades, pretendiam dar uma produtividade que a própria região não permitia. Assim, não era possível criar grandes rebanhos para engorda nem plantar grandes lavouras para a comercialização se o clima não permitia. As chuvas faltavam, as secas castigavam, criar muito gado significava correr risco de perder tudo numa única estiagem. O que era garantido na terra eram a palma e o capim, mas isso não dava lucro nenhum. E como sobreviver?
Verdade é que Timbé e Dandão já alcançaram esse novo sistema de posse da terra, onde não era mais vantagem alguma se vangloriar por possuir uma infinidade de tarefas de chão agrestino. Por isso que os empregados das fazendas, os vaqueiros e os prestadores de outros serviços viviam na dependência de um melhor ou pior ano de chuvas, da terra mais verdejante ou da mataria esturricada. Ora, se passasse mais de ano sem chover, com estiagem destruindo tudo, não havia como o proprietário manter trabalhadores sob seu sustento.
Timbé morava com sua família nos arredores de Mundaréu, mas só voltava da fazenda onde trabalhava na boquinha da noite. Saía de casa por volta das cinco da manhã, montado num burro já velho demais pra fazer outra coisa, e ao chegar à fazenda de Chico Nicácio se ajuntava com os amigos para o trabalho do dia. E um desses companheiros de trabalho era Dandão, que chegava sempre numa eguinha esquipadeira danada de boa.
Ali faziam de um tudo, vacinavam o gado, iam juntar reses espalhadas pelas caatingas, coivaravam a mataria por cima da terra, formando imensos fogaréus para deixar a terra boa para o plantio e muitos outros ofícios. Viu companheiro seu ser despedido porque mais de uma vez avisou ao patrão que a coivara acabava empobrecendo a terra, pois se logo após dela feita a terra era muito produtiva, daí por diante ficava tudo pobre, sem nutriente e sem vingar quase nada. Todo mundo sabia disso, mas não dizia nada porque precisava manter o emprego.
Dessa amizade com Dandão, um frequentando a casa do outro quando sobrava algum tempo, para um proseado, uma pilhéria boa e um trago da boa pinga, é que Timbé um dia alertou que se o tempo não mudasse logo, as chuvas não voltassem a cair rapidamente, estava vendo a hora de serem dispensados pelo patrão. Sem produzir nada, só tendo despesa em cima de despesa, não havia como continuar trabalhando por lá. E isso alcançaria todo mundo, todos que dependiam daquele emprego pra sobreviver.
E não deu outra. Três meses depois Chico Nicácio reuniu todo mundo perto do curral dos bezerros e explicou a situação. E disse mais, pois afirmou que já havia vendido a fazenda com tudo dentro, na cancela fechada, como se dizia por lá, e que os novos proprietários logo chegariam para tomar posse. Vendeu porque não havia jeito mesmo, porque não tinha condições de manter a propriedade com prejuízo atrás de prejuízo. E desfez de tudo por uma ninharia, por quase nada, diante do valor sentimental que ela representava.
Retornaram ainda cedo pra casa. Passaram primeiro no barraco de Dandão, e quando este contou o acontecido à esposa, Timbé lembra muito bem que Manuela estava nos braços da mãe, linda demais, uma sapequinha semente de boniteza.

                                                     continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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