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segunda-feira, 13 de junho de 2011

CHÁ COM AS AMIGAS (Crônica)

CHÁ COM AS AMIGAS

                  Rangel Alves da Costa*


À moda das velhas senhoras inglesas, que têm nos chás ao entardecer o momento ideal para reencontrar as amigas da mesma estirpe, e entre o chá propriamente dito, o chocolate quente, café e outras bebidas, acompanhado logicamente de bolos, biscoitos amanteigados, torradas e um sortimento de guloseimas, Dona Bibina mantinha o hábito de convidar as amigas para o chá das cinco.
Mas nada de brioches, muffins, geléias, mel, scones, pain au chocolat, croque-monsieur, madeleines, petit-four de nozes, sablé de queijo, tartelete de frutas, nada disso. Se o costume de lá é de grã-finagem, o daqui é apenas da camaradagem. Daí que apenas um chá ou café, acompanhado sempre com biscoitinhos de nata ou bolinhos de chuva. E o efeito certamente era o mesmo, senão mais requintado segundo as conversas que surgiam.
Assim, como fazia todos os dias - costume que se apegou desde que ficou viúva -, Dona Bibina almoçava religiosamente a uma hora da tarde, passeava pelo jardim para fazer digestão até próximo às duas horas e depois recolhia-se para descansar um pouco. Às quatro horas já estava em pé, esperando somente que a mocinha preparasse o seu banho.
Tomado o banho, refrescada e cheirosa de pós e lavandas, mesmo que pudesse comprar os mais caros perfumes franceses, a velha senhora era produzida pela jovem amiga como se logo mais fosse para um compromisso muito importante, uma festa, um casamento ou coisa parecida. Mas não, toda essa produção era para ir sentar debaixo de uma cobertura ao lado do jardim e esperar as amigas para o chá de todos os dias.
Chovesse de cair canivete e a velha senhora, pontualmente, às quatro horas e quarenta minutos, sentava na sua cadeira e ficava esperando a chegada das outras amigas. E também fizesse o tempo que fosse todas chegavam ali, sempre no mesmo horário, sem faltar um dia sequer, ainda que domingos e feriados.
Haveria de se indagar porque em nenhum dia da semana o chá era marcado para acontecer na casa de uma das amigas que sempre se encontravam ali. Fato é que Dona Bibina simplesmente não aceitava, não admitia deixar de ser a anfitriã de todos os dias e também de ser a pessoa que puxava o assunto mais conveniente para ser conversado naquela tarde.
Não havia muito mistério sobre o que conversavam. O passado, as saudades, as lembranças, os filhos, os netos, os amigos, o que fizeram e o que gostariam de ter feito, os sonhos não realizados e as conquistas de uma vida de tantas lutas, dores e alegrias, vitórias e as derrotas de sempre. Contudo, não se admitia, sob hipótese alguma, que o assunto morte fosse ao menos ventilado.
E sentada na sua cadeira almofadada, macia, para aliviar o peso dos anos, Dona Bibina começava a dialogar com as amigas, também devidamente sentadas ao redor, sempre trazendo flores de fragrância angelical, meigas e doces como sombras de nuvens.
“Ah, naqueles outros tempos os passarinhos voejavam e vinham ciscar e até cantarolar pertinho da gente. E era tão bonita a tarde de revoada, os viajantes seguindo adiante da janela, seguindo as nuvens pertinho do céu...”.
“Tudo é muita saudade minha amiga. O passado, a infância, a mocidade, a juventude e até os anos que começavam a nos mostrar as verdadeiras feições da vida. E de repente, sem que a gente perceba ou sinta que tudo anda rapidamente demais, ouvimos a voz que nos chama, ouvimos a voz, e já não ouvimos porque não existimos mais...”.
“Mas não esqueço de nada. Da vida, a glória por ter vivido; a família como maior troféu; a saudade possível naqueles que mereçam sentir e assim é que se cumpre o destino. Por isso mesmo que queria ter voz para os jovens, os moços, e dizer-lhes da importância de se viver o seu tempo e esse tempo mais tarde ficar agradecido por ter acolhido uma pessoa que soube viver com amor e responsabilidade”.
“Mas são outros os tempos, as pessoas são outras, e a vida que chama à escolha dos caminhos. Quem dera menos pedras e menos espinhos, e quem dera também muito mais distância nos caminhos, pois a vida, muitas vezes, é curta demais. E bem sei disso...”.
E nesse passo Dona Bibina batia palmas avisando para que o chá fosse servido. A mesinha era posta, toda enfeitada, para uma velha senhora e sua solidão. As amigas continuavam ali, mas os mortos não colocam na boca um bolinho de chuva.
A mão trêmula levava a xícara à boca. Uma lágrima caía. E as amigas diziam que já iam embora porque não podiam chorar. E uma névoa se formava ao redor. Ao redor de tudo, da velha senhora e do seu chá das cinco.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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