SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 2 de junho de 2011

TEMPESTADE - 24 (Conto)

TEMPESTADE – 24

                 Rangel Alves da Costa*


Assustado com o repentino desabamento da casa inteira, o maluquinho ficou temendo de ali estar alguma pessoa soterrada. Como não tinha mesmo o juízo bom, jogou a desacordada Manuela em qualquer lugar e correu por cima da bagaceira para ouvir se alguém pedia socorro.
E a coitada da Manuela, ainda tomada pelos efeitos da bebedeira e as consequencias da exposição às águas furiosas, mesmo assim ganhava uma réstia de luz na consciência e sonhava com o homem que lhe deixou abandonada, com o ex-companheiro que achou melhor trocar um corpo enamoradamente conhecido pela ilusão de um corpo de uma qualquer, uma barregã de salto e arrepio. E sonhava, jogada onde era uma calçada e agora uma lagoa rasa, com o ingrato do Menandro.
E era a rainha num reino lindo, esposa do rei mais lindo do mundo. Era a felicidade, a alegria, a paz e o amor em tudo. Até que um dia apareceu uma moça estranha, vinda de terras distantes, pedindo para pernoitar e foi ficando nos arredores, se aproximando da vida na fortaleza real. Mas não passava de uma bruxa com o propósito de enfeitiçar o lindo rei, separá-lo de sua rainha e depois destruí-lo. E, muito mais bela e formosa que a rainha, mais jovem e sensual, cheia de encantamentos e feitiços, a estranha moça logo caiu nas graças do rei e este imediatamente mandou que aprisionassem a esposa na masmorra, a pão e água, e marcassem a data da celebração da assunção da nova alteza real. Assim que selaram a união, o rei morreu envenenado com o beijo da nova rainha. Mas um bravo cavaleiro, que já desconfiava de tudo, sempre fiel ao seu reino, desmascarou e destruiu a bruxa se passando por alteza e mandou que trouxessem de volta a grande soberana, que era ela, a linda rainha Manuela. Depois, depois não se sabe se viveu feliz para sempre com o cavalheiro que lhe fez retomar a regência do reino, pois o rapaz, como descobriram depois, era doido, e doido varrido.
Assim sonhou Manuela, agora uma rainha sem o seu reino, pois todo o reinado havia sido destruído completamente, transformado em escombros como são os campos e as cidades depois uma terrível guerra. Se ali fosse uma batalha, já havia tombado como vítima, já havia perdido tudo o que mais precisava para viver, que era um teto por cima de quatro paredes, para criar sua filhinha Marilda com a máxima dignidade humana possível.
Tropeçando por cima de tudo, Teté pulava de um canto a outro, levantou entulhos, afastou pedaços desmoronados e nenhum sinal de qualquer ser vivente. Bem no meio de uns tijolos, por cima de um resto de cama, enxergou uma boneca completamente intacta, inteirinho no seu sorriso e cabelos desgrenhados. Achou o brinquedo interessante, colocou debaixo do braço e retornou para o local onde a mulher fora jogada e continuava desacordada.
Em seguida, já com ela novamente nos braços, mas sem largar a boneca, foi seguindo e olhando pra trás, para os escombros, tentando ainda enxergar alguma pessoa. Se as pessoas trancadas em suas casas pudessem enxergar adiante pelas frestas e buracos nas portas e janelas, certamente observariam uma cena inusitada e horrivelmente poética: uma inconsciente que havia perdido parte de sua vida sendo levada nos braços de um maluquinho.
De vez em quando olhando se a mulher abria o olho e dava sinal de ter acordado, Teté logo descobriu o principal motivo daquele desmaio tão profundo. Mesmo com as águas espanando por todo lugar, de vez em quando sentia subir um bafo de cachaça que há muito não sentia.
Mas logo essa desgraça da Cachaça Taioba, que nem cachaceiro fino aguenta beber. Se fosse Angiquinho ou Melazu ainda ia, mas logo Taioba. Por isso que tá assim e pelo jeito vai continuar desse jeito por muito tempo. Conversava o maluquinho consigo mesmo, suportando aquele cheiro terrível somente pelo momento também terrível.
A chuva ajudando a não se cansar muito, mesmo com o peso em dobro da mulher, pois gente completamente desmaiada pesa em dobro, Teté de repente sentiu que quase não estava suportando mais fazer tanto esforço. Ainda bem que a casa era no outro quarteirão, porque senão teria que parar um pouquinho para descansar.
Mas não podia porque tinha muita coisa importante ainda a fazer e urgentemente, como pedir a mãe pra dar um jeito de fazer o remédio com as ervas do quintal e num passo voltar correndo para ver se ainda havia tempo de salvar sua amiga professorinha. A professorinha não pode morrer, a professorinha tem que se salvar, ficava repetindo. E tem de se salvar porque a vida reserva coisas boas pra quem passa pela vida fazendo o bem. Que estalo de vez em quando dava esse maluquinho!
Quando bateu na porta e pediu que viessem abrir rapidamente, a mãe quase tem um passamento do susto que tomou. O pai, ainda com o rosto virado para um buraquinho na parede, do mesmo modo ficou, como se já não estivesse mais se preocupando com nada diante da natureza tão assustadora.
A irmã solteirona, que continuava ajoelhada, ora diante do oratório ora debaixo dos santos molhados pelas paredes, estremeceu por dentro de alegria, pois sentiu que as preces feitas para o irmão aparecer haviam surtido efeito. E ficou mais feliz ainda porque pensou que se as orações tinham realmente tanto poder, então brevemente ou qualquer dia desses iria aparecer por ali um rapaz que lhe olhasse e sentisse vontade de beijar na sua boca.
Beijar na boca era o que mais tinha vontade na vida, queria experimentar mesmo se era bom como as primas falavam, se fazia a pessoa perder os sentidos, como uma vez lhe disse uma amiga, ou se fazia o corpo estremecer inteirinho, queimando aos poucos que chega fazia medo do coração explodir, com dizia sempre a vizinha namoradeira.
De Lourdes, essa solteirona, gritou que a mãe continuasse onde estava porque ela mesma já ia abrir a porta, mas Sinhá Culó, do jeito que as pernas suportavam, havia se adiantado e já estava mexendo no ferrolho para o filho entrar. Abriu devagar por causa do vento e da chuva, mas o filho entrou de vez, avançou porta adentro, rapidamente, com Manuela nos braços.
E Sinhá Culó deu um grito tamanho que fez o velho Timbé deixar seu buraco na parede e se aproximar correndo, tropeçando em tudo, e De Lourdes tombar desmaiada, com uma vela acesa por cima da roupa.

                                                         continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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