SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 7 de junho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (43)


                                Rangel Alves da Costa*


A mocinha seguiu com intenção de fechar a porta, mas logo pensou diferente quando sentiu o vento e os respingos da chuvarada recaindo gulosamente sobre si. Que coisa boa, que momento abençoado presenciar o alimento e a sobrevivência do seu povo e de tudo ao redor chegando daquele jeito.
“Vento de chuva não corta, traz chave para abrir a porta da vida que morre lá dentro. Açoite de chuva é semente jogada, é passo seguindo a estrada em direção ao roçado. Sopro de chuva não espanta, não maltrata a quem se levanta para olhar para o tempo, para cantar uma toada louvando a trovoada que se derramada na invernada”. Crisosta rapidamente lembrou-se dessas palavras que eram cantadas por sua mãe toda vez que a chuvarada se deitou e escorria pelo chão esturricado.
Já não era aquela Crisosta tentando correr apressada, amedrontada, espantada com aquele que esteve ali e não pôde ver. Não, não era a mocinha que havia entrado em casa temendo o pior, fugindo daquele misterioso ser. Não era aquela que quase cegamente se ajoelhou aos pés do oratório para pedir proteção.
Também não era outra senão ela mesma, só que tão reconfortada, tão espiritualmente engrandecida que mais parecia a mulher de outros tempos. A mulher solitária, porém de coração solidário; a mocinha triste na janela, porém querendo abraçar o mundo; a menina que sonhava sem tirar os pés do chão. Era ela sim, esta que tinha sina e destino a cumprir.
Mas como seria mesmo sua sina e destino? Coisa boa é que ninguém sabe disso, ninguém é capaz de antecipar como será seu futuro. Sina é sinal ainda não marcado, ouvia de sua mãe; destino é menino traquina; ouvia de seu pai. Contudo, sabia que muita coisa diferente não poderia acontecer. Nascida ali, criança no mesmo lugar, menina no mesmo chão, mocinha que não arredava o pé.
Poucas vezes tinha estado na cidade, nunca viajou a lugares mais distantes; namorar nem sabia bem o que era. Tinha vontade sim de arranjar um namorado bem bonito e morar lá no alto da serra. Também tinha vontade de experimentar um beijo. Uma vez sua irmã falou que beijar era bom, dava um friozinho por dentro e depois fazia sentir um calor de fazer o corpo suar.
Por isso e muito mais sabia que nada grandiosamente diferente aconteceria na sua vida, principalmente agora que estava cada vez mais sozinha. E certa noite pensou em viver sempre assim, em continuar ir ficando sozinha e cada vez mais distante de tudo, até o dia que a velhice lhe alcançasse no mesmo lugar. E então temeu, ficou triste, chorou. Mas no outro dia achou melhor deixar tudo nas mãos do destino mesmo. Sempre ele, o destino.
Mas o destino quis que agora estivesse recebendo, com a maior satisfação do mundo, aquela chuvarada toda por cima do corpo. Após festivamente receber aqueles sopros molhados não pensou noutra coisa que não correr pra debaixo da chuva, deixar a ventania balançar seu corpo, sentir o luzir do relampejar cortando as distâncias.
Lembrou do dia que apanhou na bunda porque correu pra debaixo da chuva. Sapeca, saltitou de poça em poça, fez rodopios no ar, quis abraçar a nuvem, quis se enfeitar de trovoada e foi forçada a entrar em casa puxada pela orelha. Depois da porta a mão firme do pai batendo na bunda. Quis chorar e não conseguiu. No momento seguinte e a mesma mão já estava fazendo carinho, estava acariciando os cabelos ainda encharcados.
Mas agora não haveria ninguém para repreendê-la, para chamá-la gritando, para dizer que ou voltava pra dentro de casa naquele mesmo instante ou seu lombo ia arder de chicotada. Não havia mais ninguém que fizesse isso não. Então se jogou de corpo e alma embaixo da trovoada, se fez menina sapeca, dançando, pulando, espalhando alegria e contentamento.
O tempo de temporal, o tempo escurecido, o tempo que já era noite em pleno dia, era iluminado apenas pela festa da menina em sua chuva, da menina que só queria viver aquele momento. E era um mundo de chuva caindo, trovões bramindo, luzes faiscantes riscando de canto a outro, e a menina achando que ainda era menina demais.
“Enquanto o orvalho dormia as pétalas voavam nas gotas de água, e era um jardim tão belo que aquele que visse pensaria em chuva. Se pensasse outra coisa ficaria molhado, encharcado da vida que caía da nuvem. Dessa nuvem caía um buquê, violetas e rosas que darei a você. Aceite o perfume do frasco de Deus a escorrer...”.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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