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sexta-feira, 8 de junho de 2012

MIGUEZIM E VALENTÃO (Crônica)


                                             Rangel Alves da Costa*


Dá até tonteira falar nessa estória de Miguezim e Valentão. É conversa tão mafuenta que nem é coisa pra se dizer a homem de bem. Logo vai dizer que é invencionice demais e que procure outra pra lorotar.
Mesmo assim vou falar. Só pra não carregar peso na consciência vou contar. E vou dizer pra deixar bem claro como tudo aconteceu e não permitir que uma gente maldosa invente inverdade diante do fato estranhamente escabroso.
Então vamos lá, iniciando por dizer de quem se trata essa estória, quem são esses dois cabras que pelejaram em desigual luta de defesa e ataque debaixo do sol. Um querendo matar, o outro não querendo morrer; um querendo acabar de vez com o desafeto criado, e este fazendo tudo para sobreviver.
Um era Miguezim, também chamado Miguezim Tamborete, Miguezim Couro e Osso e também Miguezim Já Morreu. Coitado do homem, com menos de metro e meio de altura, magrinho, franzino que só, parecia disposto a ser arrastado pelo vento a qualquer momento.
Não só desse jeito, mas também medroso que só, cabra tão frouxo que não chegava perto nem de briga dos outros. Tinha razão de ser assim. Se levasse uma palancada não tinha coragem de revidar, se levasse um cascudo não podia fazer outra coisa senão botar o rabinho entre as pernas e fugir.
Já o outro era totalmente diferente de Miguezim. Era o contrário, o inverso e o outro jeito. Cabra grandão, corpão de rochedo matuto, fazia sombra caminhar longe por onde passava. Não respeitado por ninguém, e sim temido por todos. Todo mundo lhe cumprimentava alegre e com as pernas bambeando de medo.
Porém suas principais características eram outras, e nada dignamente virtuosas. Ex-capanga, pistoleiro de aluguel, carregando nas costas mais de dez derrubadas. Dizia-se protegido pelos poderosos e desafiador da justiça. Apregoava que se lhe botassem as mãos abria a boca pra dizer a mando de quem já tinha matado tantos. Por isso vivia solto e ameaçando o mundo.
Já ia esquecendo o nome do cabra metido a valente, pistoleiro afamado, sujeito de tocaia e de matar por besteira, bastando pensar que o outro estava passando o olho diferente. Tinha só apelido: Valentão, mas também atendia se fosse chamado por Cascavel ou Morte-Certa. Vivia com cara feia e fechada de um jeito que nem mosca de botequim passava por perto. Era feio demais, horripilante. Mas quem era doido dizer isso?
Miguezim tinha medo desse homem de se acabar. Se soubesse que estava tomando pinga num bar, evitava passar até pelo quarteirão. Pensava que bastava uma cusparada do homem e seu fim era certo. Mas não sabia o que estava prestes a acontecer, pois Valentão andava precisamente o procurando pra tirar a limpo uma fofoca que ouviu dizer.
Quer dizer, não ouviu dizer nada, pois ninguém era besta de dizer ao desnaturado uma conversa daquela. Verdade é que pra testar a fidelidade de sua esposa, chegou em casa e cismou de dar uma surra na pobre coitada, exigindo que a mesma dissesse que se não fosse ele qual outro homem que ela teria coragem de deitar.
Pra não morrer, a pobre coitada disse o nome do improvável: Miguezim. Da boca da inocente mulher veio a sina de morte do outro pobre coitado. No mesmo instante Valentão saiu porta afora disposto a tirar a vida daquele que talvez um dia pudesse fazer safadeza com a sua mulher.
Coitado de Miguezim. Valentão ia de bar em bar tomando cachaça e perguntando se alguém tinha visto o futuro defunto. Um bebinho abriu o olho e saiu às escondidas, correndo nas pernas bambas para dizer ao escolhido que se preparasse para morrer. Quando ouviu sobre quem estava no seu encalço para matá-lo, então quase morre antes da hora. Ficou sem cor, diminuiu de tamanho, tremeu que parecia querer se quebrar.
Mas o bebinho, na sua coragem etílica, disse que não tivesse medo de nada não, pois Valentão só tinha fama sem jamais ter matado nem uma mosca. E segredou ainda que o mesmo nunca havia matado ninguém porque a coisa que mais tinha medo na vida era de defunto. Por isso mesmo se pelava todo quando ouvia falar em velório e nem passava perto de cemitério.
Será que é verdade? Foi a indagação que povoou Miguezim. E ajuntou: Se for mesmo verdade já sei o que fazer. Ao invés dele me encontrar em qualquer canto de rua, sou eu mesmo que vou tirar satisfação com o medroso. E partiu em direção ao boteco onde Valentão estava tomando mais uma golada antes do tiro certeiro.
A conversa se espalhou num segundo pela cidade. Quando Miguezim chegou diante do botequim o povo já se fazia multidão pelos cantos, pelas brechas, por trás dos postes, por todo lugar que fosse mais ou menos seguro. E todos já oravam pela alma daquele pobre homem que na vida nunca passou de tamborete.
Diante do boteco Miguezim encontrou uma força na voz que não sabia possuir. Gritou pelo nome de Valentão e disse que precisava falar com ele ali fora. Num repente e a descomunal figura apareceu na soleira, caminhando entre cusparadas e de arma já em punho. E foi logo dizendo diante do fracote: Sabia que vai morrer?
E Miguezim respondeu: Sabia e por isso mesmo estou aqui. Sei que vou dessa pra melhor, mas juro que toda noite vou lhe aparecer feito alma penada e puxar bem no dedão do seu pé.
Ao ouvir tais palavras, Valentão desvalentou, ficou sem um pingo de sangue, arrepiou os cabelos, ficou apalermado. Mas encontrou força suficiente pra correr dali quando Miguezim ainda disse que não vinha só, mas sim acompanhado de todos os defuntos que morreram sem gostar dele.
E até hoje a poeira cobre na carreira do Valentão.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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