SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 15 de junho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (51)


                                               Rangel Alves da Costa*


A luminescência permanecia estendida sobre o rosto da mocinha. Não se movia, não mexia um só músculo, apenas uma jovem bonita estendida na sua rede.
Demorou mais um pouco e tudo voltou ao normal, restando somente a névoa recobrindo o anjo e o menino. Tudo ao redor numa escuridão que só não era completa por causa da chama fraca do candeeiro ao fundo. Mas quase sem luz.
A chuva lá fora parecia incessante, caindo cada vez mais forte. A ventania perdera sua força mas ainda soprava nas galhagens da mataria. Ainda ouviam-se os uivos tão misteriosos nesses momentos. Ouvia-se com mais intensidade o som da natureza molhada, encharcada, se refazendo na enchente, na enxurrada, no temporal.
Mas nada superava a orquestra da desmedida chuva caindo. Um chuê chuá ritmado e persistente, um silvo de força caindo das nuvens. Um chuverê chuverá como ninguém mais lembrava já ter caído por toda aquela região. E nem mais qualquer secura, esturricamento, agora tudo molhado demais, correndo, espanando, amedrontando.
Não havia relógio, mas já era madrugada. O galo não cantaria nos instantes seguintes. Galo de bico apinhado de água. E ele nem sabia desvendar qualquer cor do alvorecer. Tudo a mesma noite, tudo a mesma escuridão molhada e correndo pelas estradas, descampados e arredores. O homem agrestino que dali a pouco levantaria, certamente que nem havia fechado o olho. A chuva também dava medo, causava arrepios, trazia morte e desespero.
Depois que a luz desapareceu de cima da amiga, e certamente já compreendendo o significado daquilo tudo, o menino passou novamente a mão sobre o seu rosto, alisou os cabelos e juntou suas mãos num beijo. Em seguido separou-as providencialmente.
E bastou esse gesto, esse afastar de mãos, para fazer surgir em sua face um leve sorriso, se tal aspecto pode ser percebido em espírito, a selar o destino de sua amiga Crisosta, ao menos por enquanto. Eis que se o menino morto houvesse juntado as mãos da mocinha e as deixado por cima do peito, na mesma posição que colocam os defuntos, certamente que ela não abriria mais os olhos para a vida.
Em seguida o menino se voltou em direção ao anjo, fez um rápido gesto de despedida e caminhou rumo à porta. Imediatamente ela se abriu. Mesmo aberta, escancarada, não houve mais nem sopro de vento carregado de chuva, açoite do tempo lá fora ou qualquer outra coisa anormal. Apenas a porta se abrindo. Porém antes de ultrapassá-la o menino sumiu repentinamente, envolto na mesma nuvem que havia chegado.
Após o desaparecimento repentino, a porta se fechou novamente. E dentro da casa a mesma escuridão, agora murmurante. Crisosta se mexia toda, parecia que a qualquer momento despencaria da rede. E falava continuamente, porém coisas desconexas, palavras que somente a enfermidade poderia traduzir.
“Minha pedra, minha pequena pedra, vejo minha pedra. Ela está aqui, ela está aqui. Bico de anum vá embora, vá embora guaxinim. Minha pedra é uma montanha, é bem grande, é imensa a minha pedrinha. Voa subir nela e voar. Minha pedra tem uma asa e um olho. Ela tá me olhando e me chamando. Mas ela não pode voar. Tem alguém com outra pedra querendo jogar na minha pedra...”.
“Faça a coivara pai, abra a cova na terra mãe. Muito buraco pra muita semente. Nessa carreira aqui plante uma casa, naquela outra ali planta uma fogueira bem grande. O fogo maior do mundo que é pra nunca mais ter noite. Mas logo vai chover e apagar minha fogueira...”.
“Cadê o menino, cadê o menino que tava aqui? O menino tava aqui, eu vi. Cadê o menino, cadê o menino que tava aqui? Olhe ele ali, olhe ali...”.
E abriu os olhos assustada, e ainda um tanto inconsciente perguntou quem estava ali. E mandou que acendesse a luz. Pediu para trazer o candeeiro. Em seguida silenciou e percebeu que falava sozinha, falava besteira, e começou a chorar.
O anjo alegre disse a si mesmo que enfim ela havia despertado para a vida. O pé esquerdo já não estava no fio do abismo, a mão esquerda já não estava sendo puxada para o além, o seu corpo inteiro retomava seu lugar em terra segura. Dali em diante apenas suportar os infortúnios próprios de qualquer recuperação.
Continuava doente sim, muito doente, mas já fora de qualquer perigo. A não ser...
Continua...  


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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