SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 14 de junho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (50)

                                       
                                                    Rangel Alves da Costa*


O ser repentinamente surgido outro não era senão o menino morto, aquele pequeno caçador que resolveu fugir da família para continuar no lugar e que fora vitimado por algum bicho do mato. Até hoje não se sabia ao certo o que havia acontecido.
Era ele mesmo que estava ali, que havia chegado misteriosamente, surgido em meio à escuridão tempestuosa. A porta apenas se abriu e ele apareceu, contudo não chegou caminhando, vindo do lado de fora. Apenas apareceu.
Luz que se fez em meio à bruma, desceu de onde estava para sentir de perto a situação da mocinha sua amiga. Será que havia subido a escada recebido as boas-vindas, alcançado o estágio do paraíso, lá onde os meninos sempre ficam mais próximos do Pai?
Certamente. Do contrário não desceria ali em espírito, como leve e quase invisível ser visitante e com missão a cumprir. Não com a feição do menino surpreendido pelo animal bravio, apanhado tão cedo dessa vida, mas como um rapazinho de aspecto apenas um pouco entristecido diante daquela situação.
Aproximou-se da rede, afastou os panos que cobria o rosto de Crisosta, todo embebido de suor, e depois estendeu a mão, deslizando-a levemente sobre a face avermelhada. E quanta tristeza ver a beleza assim doentia, sofrida. Tudo era negrume, escurecido demais, mas uma névoa luminosa permitia esse momento indescritível.
Passou a mão sobre o cabelo e em seguida beijo-a na testa. Impossível de dizer sobre essa possibilidade ou não, mas a verdade é que se houvesse outra testemunha humana ali veria que o menino chorava, e com lágrimas que escorriam pelo seu rosto parecendo orvalho caindo da folha. Só que não havia propriamente um rosto, mas uma tênue imagem tendo gotas de água por cima.
Uns cinco minutos se passaram com ele em pé ao lado da amiga, até que olhou mais firmemente para a cabeceira da rede e uma pequena luminosidade surgiu. E dentro dessa luz o anjo da guarda, de uma brancura reluzente e quase parte do mesmo portal fosforescente no qual estava envolvido.
O espírito do menino do anjo se aproximou, segredou-lhe alguma coisa e em seguida levantou um pequeno objeto com a mão direita. Parecia uma pequena folha escrita e dobrada, um bilhete ou um envelope, alguma recomendação enviada para ser entregue precisamente ao guardião.
A encomenda se abriu, se tornou recomendação, aviso, e pairou no ar diante do anjo. Voou levemente sobre seus olhos e depois também se tornou luminosidade, se confundindo com o próprio ser de terna fosforescência. E de imediato uma luz suave começou a se espalhar por cima da mocinha, clareando-a sutilmente, principalmente o rosto.
Um rosto que nem parecia de gente doente, queimando de febre, tomada de delírios, dores, vexames pelo corpo inteiro. Mas uma fisionomia tão sublime e meiga que mais parecia adormecida feliz e contente por cima de um leito de flores num jardim. Talvez parecesse também com estátua angelical de santo, com face tão singela que mais se afigura a escultura moldada na nuvem.
Mas os jovens mortos também descansam assim, com essa ternura imensa na feição. Os jovens quando morrem também se parecem com esculturas de santos meninos. Os jovens quando morrem parecem simplesmente adormecidos, com expressão de contentamento e felicidade.
E Crisosta estava exatamente, com feição ternamente meiga, de olhos fechados e parecendo apenas num sono tranquilo e feliz. Talvez sonhando um sonho bom. Tal era a feição na luz, sem que a mesma aparência pudesse ser vista na escuridão chuvosa.
E será que o anjo, ao estender sobre ela aquele manto de luz, fazendo-a com aparência de profunda paz, não estaria dando início à cerimônia do evento maior da morte?
Continua...  


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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