SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 10 de junho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (46)

                                         
                                            Rangel Alves da Costa*


Tempo negro, negrume, escurecimento total. Natureza furiosa, pingo grosso, constante, querendo cair cada vez mais. E cada vez mais forte. Vento que sopra em açoite, sem pena de nada que possa encontrar pela frente.
Trovão é próprio de trovoada, o nome bem diz. E trovoada é trova da natureza rimando com esperança. Mas tempestade não. Tempestade é tempo e sua mais nua verdade: submeter a tudo que esteja por baixo, seja homem, planta, terra ou bicho manso ou do mato.
A casa ainda de porta aberta, recebendo as lufadas molhadas, pelo chão já começava a empoçar. Ela queria assim, gostava de ser assim, então que a porta continuasse aberta e a chuvarada ficasse mais presente ainda.
Um friozinho surgiu e logo foi aumentando. Depois de tanto tempo debaixo da chuva, Crisosta sabia que não demoraria em chegar a friagem. Procurou cobertor grosso e jogou por cima do corpo. Ficou quentinho, gostoso, confortável, mas logo pareceu que não fazia mais nenhum efeito.
Ela ainda não sabia, mas o frio que sentia não era fruto nem do vento molhado nem da chuva espantando o calor. A frieza que sentia, como se entrasse na pele e ganhasse todo o corpo, gelando até os ossos, outra coisa não era senão doença de água nova.
Doença de água nova é mais que comum entre os agrestinos, principalmente quando passa muito tempo sem chover e de repente todas as torneiras se abrem. Após o contato com a água começam a sentir calafrios, uma moleza terrível pelo corpo inteiro.
Em muitos se torna apenas ameaça, indo logo embora; em outros perdura um pouco mais e só vai saindo com chás de ervas de quintal, de plantas medicinais que se espalham por todo lugar. Mas em outros causa um transtorno desgraçado, acamando, revirando o corpo inteiro, fazendo a pessoa pensar que vai morrer. E muitos morrem mesmo.
Instala-se no contato com a água, reconhece a fraqueza do corpo e vai se tornando uma inocente friagem, depois aumenta de intensidade, faz o corpo esquentar ainda tomado de frio, a pele avermelhar, o sangue parecer lava de vulcão, a febre chegar raivosa, e por último a derrubada da pessoa.
No estágio mais crítico, dificilmente a pessoa acometida pela água nova consegue ficar em pé. Doem os olhos, dói a cabeça, doem os ossos, os lábios começam a inchar, as bochechas parecem duas maçãs incendiando, dá uma gastura terrível, um fastio danado, e a pessoa não pensa noutra coisa senão ficar deitada o tempo todo.
Ainda assim não consegue descanso, sossego, não consegue dormir, vez que se vira de um lado a outro e a cama nunca faz ninho. E não adianta correr pra médico, correr pra benzedeira ou rezadeira, se empanturrar de chás disso e daquilo. É doença com segredo próprio. Assim como chegou pode sair, mas dependendo do organismo da pessoa pode até se tornar em problema mais grave e fazer a pessoa se findar.
Crisosta sabia disso tudo, mas nem imaginava que aquele frio constante e que não passava nem bem enrolada já fosse um sintoma da água nova. Tomada de panos que não surtiam efeito, andava pela casa inteira observando o surgimento de novas pingueiras, as infiltrações e os perigos mais visíveis.
Mesmo na pouca luz do candeeiro percebia que muitos lugares nas paredes não suportariam se a chuva continuasse assim por muito tempo. O barro ia desprender e clarões seriam abertos para as águas irem entrando como quisessem. E onde uma fresta se abrisse logo aumentaria, logo cairia um tufo de barro e mais um pedaço.
Disse a si mesma que no dia seguinte, quando o tempo se abrisse mais, olharia melhor aquelas situações. Contudo, sem imaginar que com a continuação da tempestade o que fosse manhã seria a mesma noite. Sem o sol, sem clarão no horizonte, apenas o negrume formado pelas nuvens carregadas, talvez a noite ainda continuasse por muito tempo.
Mas era teimosa a mocinha. Já sentido o frio lhe tomar ainda mais, se dirigiu até próximo a porta aberta para sentir a força das águas caindo. E a lufada molhada que recebeu no rosto foi o que faltava para a doença se instalar de vez.
Começou a se tremer toda, a sentir o queixo bater, a ser tomada por um misto de nevasca e labareda, a sentir gelidez e calor. Por fora o frio de estremecer, por dentro o sangue começando a ferver.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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