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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

DO NINHO DAS DELÍCIAS À CASA DA LUZ VERMELHA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


A beata entrava nos descampados, dava voltas e mais voltas, tudo fazia para não passar nem perto daquela casa. Parecia uma cobra velha se esgueirando pelas locas de pedras. O mesmo acontecia com a solteirona, só que esta olhava de longe pelo canto do olho e começava a se benzer.
Quem via a invicta nos benzimentos afirmava que os motivos eram totalmente outros. Não era nada de esconjuranças nem irresignações diante daquela casa, mas pela carne que lhe fervia por dentro só de pensar no que acontecia por lá. E logo ela, que dava o ouro do mundo a quem descobrisse sua botija.
Certa feita, o dissimulado do vigário das redondezas, querendo dar uma de defensor da moralidade pública e da pudicícia daquelas mesmas que ele costumava levar para o coito da sacristia, achou de querer formar, em plena missa, uma cruzada da decência familiar para desalojar a velha cafetina que na casa mantinha residência e comércio.
E nem precisa dizer muito sobre o que ela oferecia ali, a preços triplicados ou diminuídos segundo as posses dos clientes. Ao menos era isso que comentavam em segredo, aos ouvidos sempre sujos das velhas e novas fofoqueiras, e dos imprestáveis marmanjos também. O que não sabiam, inventavam sobre a Casa da Luz Vermelha.
A proprietária do ambiente não suportava ouvir esse nome, Casa da Luz Vermelha, já que segundo a mesma não se tratava de bordel chinfrim nem prostíbulo de puta barata nem em fim de carreira. Certamente já não enxergava bem, mas não se cansava de alardear que oferecia o que de melhor havia em toda a região.
Daí que aumentava em muito os seus já avantajados peitos para dizer que o nome do seu peculiar comércio era O Ninho das Delícias. Talvez, num passado distante, até que pudesse ter sido assim mesmo, um ninho ou jardim das delícias, um paraíso carnal e de mulheres belas e apetitosas. Mas agora, depois que o coronelismo deixou de ser a razão do lugar, não passava de um cabaré igual a qualquer outro de beira de estrada ou beco de rua.
A única diferença, e o que também mantinha um aspecto diferenciado, era o velho, porém conservado e imponente casarão onde estava instalado. A velha proprietária também não gostava que mencionassem isso não, mas tudo mundo na região sabia que o dito prédio lhe havia sido presenteado por um famoso amante do passado, nos idos de novinha quando, ainda bela flor da estação, chegou do interior cheirando a lavanda barata e dizendo-se francesa legítima.
O Coronel Querêncio Medrado lançou o olhar na sua Belle de Jour e ato contínuo soprou no ouvido do ordenança mandando redobrar, a qualquer custo, a colheita de cacau. Apaixonado, não mediria esforços para encher sua bela francesinha das melhores roupas, joias e perfumes. Chamou-a ao seu lado, mandou que sentasse no colo e pediu para que falasse alguma coisa bonita em francês.
E ela baixou a cabeça envergonhada e disse: Sei falá essa língua num sinhô. Sô moça matuta, mai se o coroné quisé sei fazê uma coisa bem boa! São tais realidades da vida que apaixonam qualquer um. E a simplicidade da mocinha fez o poderoso latifundiário ficar mais apaixonado ainda, mais preso aos encantos do amor à primeira vista. Então chamou o mesmo ordenança para mudar a ordem dada.
Agora era pra não deixar que nenhum outro homem chegasse perto de sua flor de jabuticaba, que ele estivesse por perto ou não. Mas resolveu não tirar a mocinha do cabaré, apenas cuidando que mantivesse um quarto só dela e reservado às suas visitas das quartas e sábados. Nos outros dias jagunços eram escalados para ficar por ali vigiando se ela saía do quarto ou se algum atrevido tinha a petulância de chegar até perto da porta.
O coronel já estava envelhecido. Por mais que o amor o fizesse muito remoçado, ainda assim não podia esconder as marcas da idade, das tantas lutas sangrentas para assegurar e demarcar suas terras. Queria demais dar casa e conforto à sua pequena, mas sabia que não podia.
Jamais afrontaria sua família mantendo casa de rapariga. Frequentar cabaré era uma coisa, e manter quenga em endereço próprio era muito diferente. Se seus filhos doutores soubessem não ia dar certo de jeito nenhum. Também porque a balofa da esposa continuava viva e espalhando aos cantos quatro cantos que jamais havia sido traída pelo seu coronel.
Morreu nos braços da amante, numa manhã de sábado. Esforçou-se demais para mostrar presença carnal e o velho e combalido coração não suportou. Um grito terrível saiu do quarto, invadiu o cabaré e tomou as ruas. Morte amorosa, nos braços da amante, mas ainda assim um maluquinho que vivia nos arredores saiu correndo para alardear a existência de terrível tiroteio, estando já três mortos contados.
A cidade em peso, entre morais e imorais, safados e fingidamente honestos, se aglomerou defronte ao cabaré para saber das causas e consequências da tragédia. Queriam entrar a qualquer custo, invadir mesmo, pois a essa altura os mortos já passavam de dez, segundo as fofocas que rolavam soltas. Só não entraram porque o senhor delegado chegou acompanhado de dois policiais e exigiu ordem absoluta.
Minutos depois saiu até a porta para relatar o acontecido. E disse em voz alta, quase aos gritos, que tudo estava bem lá dentro, que não havia acontecido qualquer tiroteio, apenas um fato deveras lamentável: o Coronel Querêncio Medrado havia morrido nos braços de sua amante rapariga. E o corpo ainda estava estirado em cima da cama, nuzinho da silva, com todas as banhas e pelancas que tinha direito.
Gritos de espantos foram ouvidos no mesmo instante. Ninguém queria acreditar que o latifundiário, o homem mais rico e poderoso da região, tivesse morrido e muito menos naquelas condições relatadas, na cama de uma amante. E se foi assim, logicamente estava fazendo safadeza. E agora? Chega! Chega! Chega! Quem vai ter coragem de avisar à família?
Mas nem precisavam muito discutir sobre isso. O maluquinho se encarregou de sair na maior correria do mundo e chegar sorridente junto à balofa esposa e calmamente dizer que o coronel havia morrido lá no cabaré e em cima de uma puta. A velha senhora só teve mesmo tempo de botar a mão no peito, arroxear e cair pra trás. Caiu mortinha, imensa, esquisita, toda torta. Antes que os empregados acorressem aos gritos o maluquinho já trazia, sempre correndo, o noticiário de volta.
Quando contou à turba ainda reunida diante do cabaré, logo deliberaram invadir aquele antro maldito para tocar fogo naquela que havia sido a responsável pela destruição dos cabeças da família mais tradicional do lugar. Imediatamente ela, a ex-francesinha, foi sentenciada e responsabilizada criminalmente pela morte tanto do Coronel Querêncio como de sua esposa Ninoca Medrado, ou Mãe Ninoca, como costumavam agraciá-la.
Assim que partiram furiosos em direção à porta, o ordenança do morto apareceu ladeado com três jagunços e, de armas em punho, foi logo gritando para avisar que quem se metesse a besta em querer levantar a mão pra mocinha ia tomar chumbo grosso nas fuças. E disse mais: “Em vida, o Coronel mandou proteger a mocinha, e vai continuar assim depois do Sinhôzinho morto”. E tirou uma folha de papel do bolso.
Recuados, mas avexados para saber do que se tratava, quase dão um piripaqui conjunto quando o valentão revelou o que ali se continha: “Aqui é o documento deixado pelo Coronel passando a propriedade desse casarão para a mocinha, sua boa e confiada amante. E se foi o desejo do Sinhôzinho, assim será cumprido. A ela será entregue essa escritura e de agora em diante será tida e havida como única dona desse lugar. E quem tiver achando ruim que venha reclamar comigo”.
Isso se passou há muitos anos. A partir daquele momento a mocinha passou a ser dona do cabaré mais famoso da região. Se dizendo viúva, chorando sempre ao falar das virtudes de seu benfeitor, jamais aceitou dinheiro ou presentes de outros coronéis, políticos, ricaços. Fechou o balaio de vez, como sempre dizia. Sua vida passou a ser apenas a de gerenciadora do ambiente, numa rudimentar cafetinagem que nem sabia bem o que era.
O Ninho das Delícias foi, por muito tempo, a fina flor da raparigagem. Mas isso quando o dinheiro era fácil para os seus frequentadores. E a partir do instante que o cacau começou a perder importância comercial, logo os fregueses começaram também a escassear. Já não havia belas mulheres, prostitutas novinhas vindas do recôncavo para a função. O que restou foi um resto de feira para consumo próprio. Quengas batidas, gordas, cheias de celulite, saudosamente embriagadas. E o Ninho famoso passou a ser chamado de Casa da Luz Vermelha, nome, aliás, de qualquer cabaré de quinta categoria.
E era essa Casa da Luz Vermelha, esse cabaré de qualquer bêbado, que novamente causava tanta revolta nas beatas, nas solteironas, nas falsas moralistas e até no dissimulado vigário do lugar. E a data da invasão do ambiente para purificá-lo com água benta e afastar as impurezas ali existentes já estava até marcada. A Cruzada Pela Moralidade e Contra a Raparigagem sairia da frente da igreja na noite da quinta-feira seguinte.
No dia marcado, na hora combinada, o grupo saiu empunhando cruzes, rosários, terços, Bíblias, frascos e mais frascos de água benta. O vigário, inventando uma repentina enxaqueca, se eximiu de acompanhá-las. Ora, já tinha marcado encontro na sacristia naquele mesmo horário, com a honestíssima mulher do padeiro, beata que avisou com antecedência da impossibilidade de acompanhar aquela cruzada.
Meia hora depois e o grupo já estava defronte ao velho casarão. E tudo parecia normal lá dentro, com poucas luzes acesas, música na vitrola, cheiro de fumaça e de bebida levantando pelo ar. Ao grito de uma, empunhando uma cruz, as outras seguiram em marcha. Empurraram a porta e pararam subitamente, espantadas.
Ali dentro apenas uma velha mulher, a própria dona do cabaré, sentada solitariamente ao redor de uma mesa, chorando, tendo um copo de bebida à sua frente. Apenas olhou para as beatas invasoras e, num esforço terrível para sorrir, acenou para que entrassem mais. Tão espantadas que estavam com a situação encontrada, se viram caminhando adiante, sentando ao redor da velha mulher.
E naquela noite ouviram uma história de amor e de saudade como jamais escutaram. E retornaram com as verdades da vida no coração. Tristes, silenciosas, chorosas. Mas também contentes, tomadas por uma fé diferente.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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