SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

SUBLIMES REFLEXÕES (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


O rio, a menina, o olhar. As águas do rio não passam duas vezes pelo mesmo lugar. Mas todo entardecer a menina volta à beira do rio para ver as mesmas águas passando. E são as mesmas águas, fazendo a curva adiante e refletindo nos olhos molhados, causando a mesma tristeza.
Será que a brisa do anoitecer é a mesma que passa abraçando a menina na janela, beijando-lhe a face e esvoaçando levemente seu cabelo? Dizem que o vento que chega é o sopro que passa e segue pelas curvas dos montes, para nunca mais voltar. Mas a menina sente o mesmo abraço, a mesma saudade, a mesma tristeza pela distância do amado.
Um dia, desde muitos anos atrás, alguém raspou parte do tronco de uma árvore e ali, talvez com ponta de canivete, grafou dois nomes por cima de um coração desenhado, o seu nome e o de sua paixão. Mas depois cortaram a árvore, deixaram aquela parte do tronco jogado ao relento. Depois de tantos anos aquele desenho continua como no dia seguinte à apaixonada inscrição. Mas será que o amor foi também preservado?
Chuva, tempestade, destruição. As ruas são tomadas de água, as enxurradas trazem tudo que encontra pela frente, o lixo e o imprestável. Mas também uma flor. Vem sozinha por cima das águas escuras, sujas, fedidas, nojentas. Mas passa e segue viagem por cima de tudo. E alguém da janela olha e se encanta com a bela flor. Haveria ainda beleza naquela flor?
A flor está viva, ainda intacta, perfeita, com a mesma cor com que fora arrancada da planta caída pela força das águas. Perfume não há, aroma não há, e também deve estar suja na parte que se assenta na água. Mas olhos avistam-na e se enchem de brilho e encantamento. E logo uma mão recolhe a flor. Lavada ainda debaixo da chuva, é acariciada e cheirada. E exala o mesmo perfume, o mesmo aroma. Eis o mistério da indestrutível beleza!
Seca, estiagem, tudo esturricado. A paisagem é cinza, as plantas secaram, o mandacaru entristece petrificado. Não há mais bicho correndo, preá se escondendo, calango trilhando destino apressado. Tudo parece morto, feio demais, natureza sem vida. Mas em cima da pedra ardente, com raízes vindas de suas brechas, há um cacto cabeça-de-frade no mais perfeito estado.
Enquanto tudo seca e morre, cai e se torna graveto, ele continua como se nada daquilo estivesse acontecendo ao redor. Está verdejante, e de um verdor renovado, com espinhos crescidos, rechonchudo, e com sua auréola avermelhada chegando a florir. Logo surgirão minúsculas as flores por cima da cabeça-de-frade, logo aparecerão as abelhas, logo a natureza dará sua graça. E por mais que mil sóis recaiam ali no cacto, ainda assim permanecerá um contínuo jardim.
Coisa contraditória e lamentável encontrei nas minhas andanças pelo sertão. Logo ao alvorecer, avistava rapazinhos passando com gaiolas nas mãos e seguindo em direção à mata para estendê-las nas galhagens dos pés de paus, e aí deixar os passarinhos engaiolados sentir a presença dos outros em liberdade, voando ao redor. Justificavam a ação dizendo que se reanimavam e passavam a cantar mais quando retornassem.
Depois perguntei se era mesmo verdade que aquele encontro entre o aprisionamento e a liberdade era garantia de chegar à parede de casa e entoar gorjeios com alegria e satisfação. Apenas de um ouvi a verdade. A maioria dos passarinhos emudece depois desses encontros com os outros em liberdade, e são levados novamente para ver se a tristeza não os desfalece de vez.
Por isso mesmo que muitos não voltam mais nas gaiolas, ali mesmo são colocados novamente em liberdade. Não vale a pena criar um passarinho que não canta mais quando está em meio à natureza nem perto de seus amigos. Mas as gaiolas não voltam vazias, pois os criadores já espalharam arapucas e ali mesmo na mata escolhem suas próximas vítimas. E sem conhecer seus destinos, entram na gaiola já cantando. E cantam dias seguidos, até avistarem a liberdade, até a dor se transformar em silêncio.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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