SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 23 de setembro de 2018

MEU AMIGO LAMPIÃO



*Rangel Alves da Costa


Ache estranho não, moço bom. Haverá de dizer que pelo tempo, pelas distâncias de tudo, eu jamais poderia ser dos idos de Virgulino Ferreira da Silva, aquele que depois se fez Lampião, e ainda mais tarde Capitão, e muito menos de ter sido seu amigo. Mas fui amigo sim, e ainda sou, e de modo que jamais seja desapartado nosso laço de amizade. Maluquice, doideira? Não, moço. Nada disso. Vi Virgulino na infância, vi Lampião conhecendo uma arma pela primeira vez, e vi o Capitão já patenteado na luta. E vi muito mais, conforme haverá de saber.
Até pode não acreditar, mas vou dizer sim senhor. Nesta manhã de sertão, avistando o arvoredo gemendo a sua dor, enxergando a ventania levando garrancho e folhagem, tudo numa sequidão de causar sofrimento, eis que ao longe foram surgindo as carnicentas. Urubus, gaviões, carcarás. O que será, que bicho morreu, foi o que me perguntei. Desceram em rasante mais adiante e sumiram. Não havia cheiro podre, de bicho morto, de carniça ou de sangue novo. Fiquei pensativo demais.
Pouco depois me lembrei de suas palavras, ainda meninote, nas bandas de cá do cercado da fazendola de seu pai. Você, amigo Lampião, ainda era no tudo e no todo aquele nascido como Virgolino Ferreira da Silva. No nome assinado assim, mas na palavra dita a pronúncia Virgulino, aquele mesmo menino que espantado avistava as aves carnicentas descendo em nuvem para bicar vaca morta pelas mãos odiosas da vizinhança. Como disse, espantado, entre o entristecido e o enraivecido, eu ouvi você apenas dizer: Vão me pagar!
Coisas que eu nem gostaria de recordar, juro por Deus. Um menino tão quieto, tão comportado, mas parecia pelo avesso perante os acontecimentos que se repetiam. Naquele tempo, igualmente meninote, eu também não atinava muito para as durezas da vida, apenas via o que faziam à sua família, apenas sentia o sangue fervendo nas entranhas dos seus, mas sequer conhecia uma frase que depois fiquei conhecendo: Pisado, até um verme se revira! Isso mesmo, amigo Lampião, o boi só suporta a canga por que não tem a mesma vara de ferrão.
Recordo-me muito bem quando você deu o primeiro tiro. Mirou na ponta do pedaço de pau e a carcaça oca da cabeça de vaca ali colocada foi parar ao longe. Desde aquela vez, sua mão nunca tremeu segurando arma. Difícil imaginar quantos tiros deu, mas ainda hoje se ouve grito e gemido da bala acertada. Mas depois de tanto tempo, depois de ouvir tantas histórias tronchas sobre sua vida, eu achei até bom que ontem você tivesse me aparecido em sonho para contar a verdade sobre muita coisa que andam lorotando de canto a outro, na palavra e na escrita.
Também não posso deixar de lembrar quando sua mãe exigia que jamais se esquecesse das horas sagradas. Meio-dia, e estivesse onde estivesse, você tinha que tremular na boca uma reza e fazer o sinal da cruz. Do mesmo modo na hora maior, já na boca da noite, quando o anoitecer surgia. Foi por isso mesmo que você sempre carregou tanta fé. Foi por isso mesmo que você jamais se separou das coisas sagradas, dos anjos e santos, das rezas, da crença em milagre e da fé. Sua fé era tão grande que levava oração nos apetrechos do corpo e sempre que podia se afastava um pouco para falar com o seu Deus e sua Nossa Senhora da Conceição.
Perante os olhos de muitos – e de modo que até se acredita -, no seu coração já não cabia mais nenhuma piedade, compaixão ou fé. Ledo engano, amigo, eu bem sei disso. Não só se abnegava pelas forças do alto como da terra. Padre Cícero é exemplo maior. Quanta devoção e respeito você sempre nutriu por ele. Quando, em 26, você foi chamado a Juazeiro para ser patenteado como Capitão, eu não tenho dúvida que nenhuma patente lhe interessava, não lhe interessava perseguir a Coluna Prestes e muito menos firmar qualquer tipo de compromisso militar com o Estado. Você só foi por que o chamado foi feito pelo Padre Cícero. O que lhe interessava mesmo era estar com aquele que, em sua opinião, já era um santo homem.
Amigo Lampião, só eu sei o quanto relutou para não levar adiante a vida de bandoleiro, de sanguinário, de bicho entrincheirado nas caatingas. Mas também só eu sei de sua determinação em não permitir que a sua honra e de sua família fossem ultrajadas pelo poder e o mando. Ora, invadiram suas terras, feriram seu pequeno rebanho, intimidaram e, por fim, fizeram com que fossem como que expulsos do próprio lar. Já havia sido demais. E por todo lugar que chegassem havia perseguições e ameaças. Como se diz, amigo Lampião, o seu sangue já estava envenenado de tanta desdita. E ainda por cima foram ferir um seu bem maior: mataram seu pai.
Daí em diante o homem se tornou cangaceiro. E aquele “vão pagar” começou a ser escrito com toda voracidade. E durante vinte anos você varou os carrascais nordestinos em intensa luta de vida e de morte. Chorei muito quando soube da notícia do acontecido lá em Angico. E entristecido continuei até você me aparecer em sonho para dizer o inimaginável: “Ainda tô vivo. E ainda tô vivo por todo lugar!”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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