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sábado, 12 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 50 (Conto)

DESCONHECIDOS – 50

Rangel Alves da Costa*


A pessoa se aproximou, porém não o suficiente para João pescador distingui-la através de suas feições. Continuava apenas o vulto que ao sentir a presença do ribeirinho diminuiu o passo e começou a perguntar de onde estava:
“Viu meu passarinho, quem viu meu passarinho? Ele tava no alto, ele tava na nuvem, ele tava no céu, ele tava por cima de mim, ele tava em todo lugar. Aqui embaixo não tem caminho nenhum, é cego meu caminhar, não sei mais onde seguir, não sei mais onde parar. Meu passarinho avoou, veio pra cá meu passarinho, veio ver o meu caminho, mas sumiu meu passarinho. Onde tá meu passarinho, alguém viu meu passarinho?”.
Tanto repetir sobre passarinho, imediatamente João se lembrou daquele que estranhamente voava por ali e depois apareceu já morto, sendo trazido pelas águas e sumindo de repente nas suas entranhas. Mas nem deu tempo de responder nem tentar reconhecer o estranho, pois o mesmo, que vinha pela beira do rio, resolveu subir nuns barracos e desaparecer.
Depois certamente João teria muito tempo para conhecê-lo, para ter o prazer ou desprazer de conviver com aquela estranha figura, pessoa na fronteira entre a sanidade e a insanidade. Teria muito tempo para conviver com o mesmo, vez que não se tratava de outra pessoa senão Aristeu, o profeta.
Aristeu havia chegado às margens do São Pedrito seguindo o voo do passarinho. Desde que lhe foi dito em sonho que seguisse o pássaro que a profecia iria se cumprir, nunca mais deixou de desobedecer a esse ordenamento misterioso. Como já sabia, o guia de penas voava e voava e depois retornava, seguindo novamente num voo mais vagaroso e fazendo parada nos galhos dos caminhos. Era o tempo de o profeta segui-lo.
Só que ao chegar àquela região ribeirinha, nas proximidades da beira do rio ainda desconhecido, o pássaro fez vários vôos de reconhecimento até sumir de vez. Aristeu até sentou muito tempo numas pedras olhando pra cima para ver se o seu guia retornava e mostrava a certeza do caminho a seguir. Mas esperou tempo demais e nada dele voltar.
Então saiu caminhando sem destino, olhando sempre pra cima e caindo de palmo em palmo, tropeçando em cada ponta de pedra ali existente em abundância. No terreno íngreme, com as armadilhas em cada passo, de repente e o homem se estabanava pelo chão. Sorte que tinha o couro duro e as juntas parecendo elásticas, senão não suportaria seguir adiante tomado de tantas dores e machucões.
Mas a essas alturas o profeta já estava parecendo um louco varrido, um maltrapilho, alguém que já havia abdicado em manter uma boa aparência há muito tempo. Cabelos grandes e desgrenhados, entrelaçados pelo próprio meio, barbas igualmente longas e mal cuidadas, embranquecidas, corpo de magreza de faquir, pele enrustida pelo sol e pelas durezas do tempo, unhas animalescas, um resto de vestimenta aqui e acolá. Na verdade, parecia mais um selvagem perdido pelas veredas e estradas.
Contudo, vivia esfarrapado, mas não com o corpo completamente malcheiroso, pois não podia ver uma cacimba ou um poço que logo tomava banho. Tomava banho e quando podia passava a água na roupa e deixava secar ao sol. Não vivia com fome porque quase não comia e qualquer fruta do mato que encontrasse pela frente lhe bastava.
Carregava nas costas uma bolsa com pequenos objetos que talvez nem mesmo ele soubesse mais o que se escondia ali. De resto, uma cabeça com suas razões que para qualquer um seria de plena e total loucura, mas que para ele estava sempre com a mais pura razão e na maior lucidez. Para todos os efeitos, ele sabia muito bem o que queria e buscava naquela caminhada e na vida.
Ao perder aquela pessoa de vista João pescador se sentiu estranhamente decepcionado, e tanto pelas palavras que tinha ouvido como pela confusa e repentina aparição. O sumiço sem mais nem menos, assim num instante, foi outro fator que lhe causou confusão. Ainda correu na direção do vulto, porém sem conseguir divisar mais qualquer coisa por entre os declives e a mataria que já se formava.
No instante que ia se virar para descer do pequeno areal onde estava tomou um susto que quase não se segura em pé. Mesmo na noite, apenas com a claridade do luar, um pássaro surgiu repentinamente vindo da outra direção e por pouco não se choca com o seu rosto. João abaixou a cabeça rapidamente e só pôde enxergar um pássaro passar numa velocidade estonteante, de olhos incrivelmente vermelhos, faiscantes, e com um chilrear bem alto que mais parecia um agouro ensurdecedor.
O pescador nem imaginava que pássaro era aquele e o que fazia por ali naquele instante, em plena noite. Mas se o profeta o tivesse avistado ficaria contente, porém sem imaginar que aquela ave não era a sua guia, pois já morta, mas a outra surgida após aquele sonho embaixo da árvore frondosa.
Essa era a ave do mal, a que estava procurando interferir na profecia e que ele pensava que já tinha sido destruída. Não se sabe como, mas agora ela estava de volta. Com a morte do pássaro do bem, o pássaro da maldade estava de volta, talvez tentando tomar o seu lugar para fazer o inverso.
João correu rapidamente dali e assim que chegou diante o seu barraco ouviu uma voz que só poderia ser de sua falecida esposa: “João, meu João, cuidado. Muito cuidado porque os estranhos já estão chegando”.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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