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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 19 de março de 2011

A SOLIDÃO E A JANELA (Crônica)

A SOLIDÃO E A JANELA

Rangel Alves da Costa*


A dona da cadeira de balança nunca mais iria sentar nela. O vento do tempo soprou enquanto ela se balançava e a levou. Ali também o vento levava...
Agora a cadeira continuava no mesmo lugar, logo atrás da janela que dava para a rua, para o mundo lá fora, para os caminhantes e descampados. Porque dali se enxergava tudo, desde a mulher fofoqueira que passava apressada ao lobisomem das noites de sexta-feira feira santa.
Agora os olhos haviam sumido por entre brumas de qualquer silêncio. Os olhares não enxergavam mais o mundo que sentia saudades. As paisagens pareciam acostumadas, a brisa passava fresquinha só pra mostrar que estava ali, certas pessoas também gostavam de passar e dar o costumeiro bom dia ou boa tarde. Se pudessem ver que ela continuava do outro lado olhando tudo, certamente dariam também boa noite.
Morava sozinha. Tinha parente muito, porém morava sozinha. Os que chegavam ali, com sangue nas veias, nem se importavam mais com ela. A benção não pediam mais, não perguntavam como estava indo, se estava precisando de alguma coisa. Nem um só dedo de prosa.
Ao entardecer abriu a janela e sentou na sua cadeira. Realmente estava sentindo uma fraqueza diferente, mais prolongada, mais enjoativa; a tontura havia voltado e estava com um fastio de não ter colocado nem uma bolacha na boca naquele dia. Estava certamente adoecida, sabia disso, mas tinha esperança daquilo tudo logo logo ir embora.
Sabia que pra esses probleminhas não havia coisa melhor do que remédio de quintal. Quando precisava ia lá e pegava o mastruz, a hortelã, a erva cidreira, o fedegoso, a arruda ou outra plantinha, flor, folha, casca ou raiz e fazer o remédio certo. Era tiro e queda, como diziam. Mas já havia tomado três xícaras de chá e nada de melhorar.
Sentou na cadeira com a esperança de melhorar, mas logo percebeu que talvez nem estivesse enxergando como de costume, pois mesmo com a idade avançada se orgulhava de ter a vista em perfeito estado. Não eram visões entrecortadas não, cheias de brumas ou sombras, mas tudo com uma nitidez inacreditável. Porém surpreendente mesmo era o que avistava logo adiante, passando no outro lado da janela, pela rua e mais afastado.
Lampião e Maria Bonita e mais um monte de cangaceiros passaram apressados, mas ainda assim o Capitão teve tempo de olhar pra janela e fazer uma ligeira reverência; Antônio Conselheiro vinha logo atrás movendo um cajado pelo ar e maldizendo o império, os impostos e os coronéis latifundiários; não demorou muito e três tanques do exército passaram cuspindo fogo e mais atrás soldados enlouquecidos de armas nas mãos e mirando até a janela; um menino passou em cima de um balão jogando pirulitos e balas; uma dançarina passou bailando, descalça, em pleno chão quente e cheio de pedras; uma criancinha de fraldas levava a mãe nos braços; bichos passeavam de gravata e jaquetão, conversando entre si coisas muito importantes; por fim passou o viúvo, jogou uma flor e acenou com um beijo. E ela disse que esperasse que iria também.
Encontraram no outro dia ela ainda se balançando, mas já desfalecida, porém com olhos abertos mirando a janela. Dois dias depois e a casa ainda estava intocada, com a cadeira de balanço no mesmo lugar e a janela ainda aberta.
Quando a ventania passava açoitando, se alguém estivesse dentro chegaria a sentir o ranger da cadeira no seu vai e vem solitário. Amanhecia e anoitecia e aquela mesma situação de tristeza e abandono.
Ninguém na cadeira podia mais olhar para fora da janela. Se pudesse veria quando ela mesma passou ao anoitecer e olhou para dentro, para ver se estava se balançando e vendo enquanto passava.
Avistou apenas a cadeira balançando e seguiu adiante.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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