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quinta-feira, 17 de março de 2011

PONTA DE FACA (Crônica)

PONTA DE FACA

Rangel Alves da Costa*


Talvez porque ao longo dos anos tenha sido sempre rotulada como canção brega, verdade é que os ouvidos mais atentos e inteligentes não deram a devida atenção à letra e melodia da música “Ponta de Faca”, do cantor e compositor Nenéo, hoje conhecido somente como autor de alguns sucessos gravados por artistas famosos.
O cantor Nenéo é, assim, bem menos conhecido do que o compositor. Batizado como Nélson de Moraes Filho, cresceu numa vida difícil e dura lá pelas bandas do Morro do Borel, no Bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Foi engraxate, lavador de carros, fazedor de bicos para sobreviver.
Tal vida difícil seria acrescida de outros sofrimentos infligidos ao menino ainda adolescente. Contando apenas com 14 anos, em menos de um mês perdeu a mãe, o pai e um irmão. Passou então a cuidar praticamente sozinho dos outros irmãos, o que não conseguiu por muito tempo, vez que tiveram de ser entregues a outros familiares.
Contudo, mesmo em meio a tantas dificuldades e privações, o rapazinho Nenéo nunca se afastou de seu violão, instrumento que o fazia mais feliz e abria sua mente para a possibilidade de um dia ser cantor ou compositor reconhecido. Para que cantores famosos tomassem conhecimento de suas canções fazia o improvável de se imaginar, vez que invadia estúdios e pedia para que porteiros colocassem fitas com suas músicas debaixo da porta.
O Nenéo cantor começou a gravar próximo ao final da década de 60, com músicas que até alcançaram algum sucesso à época, principalmente da década seguinte em diante. Contudo, enquanto cantor nem se aproxima do sucesso que fez como autor de mais de 400 músicas gravadas por artistas como Roberto Carlos, Paulo Sérgio, Odair José, Alcione e Zezé de Camargo e Luciano, dentre outros. É dele, por exemplo, “Meu ébano”, “Cristal quebrado” e “Quero ter você perto de mim”..
Não obstante esse sucesso alcançado através de outros cantores é como compositor e intérprete da música “Ponta de Faca”, gravada no início de sua carreira, que está demonstrada a genialidade do artista, principalmente na letra primorosa que imprimiu à canção. Eis o que diz os versos magistrais:

“Eu queria saber o que faço e agradar o mundo,
se preciso dar murro em ponta de faca ou não,
se não devo parar os meus passos à beira do abismo,
para ter uma estátua na praça ele era tão bom,
não queria saber dessa dor que eu sinto por ela,
porque sei que ela vive estirada nos braços de alguém,
que não sabe e nem pensa que um dia pulei a janela
e amei assustado pensando que logo ele vem...

Da vida não levo nada do jeito que a vida vem
depois de fechar os olhos não adianta ser alguém.
Da vida não levo nada, do jeito que a vida vem
depois de fechar os olhos eu não sou ninguém,
depois de fechar os olhos eu não sou ninguém...

E me vejo parado perdido nas coisas do mundo,
eu as vezes duvido que o povo tenha a voz de Deus,
é que homem às vezes se sente mais realizado
se ao invés de dizer parabéns ele fala coitado!

Da vida não levo nada, do jeito que a vida vem,
depois de fechar os olhos não adianta ser alguém.
Da vida não levo nada do jeito que a vida vem
depois de fechar os olhos eu não sou ninguém

Da vida não levo nada, do jeito que a vida vem,
Depois de fechar os olhos não adianta ser alguém”.

Ora, se poderia dizer que a letra não passa de uma declaração de amor não mais correspondido, acrescida de conseqüências revoltosas para tudo que acontece na vida. É sim, mas nesse contexto há um reconhecimento da fragilidade e impotência do ser humano que leva a um desfecho maravilhoso: por que causar dor, ferir os outros, se a ninguém é permitido fazer isto, vez que o ser humano não passa de pó e ao pó há de retornar.
E daí as frases maravilhosas para contar essa história de amor e desilusão: “Eu queria saber o que faço e agradar o mundo, se preciso dar murro em ponta de faca ou não, se não devo parar os meus passos à beira do abismo, para ter uma estátua na praça ele era tão bom...”; “E me vejo parado perdido nas coisas do mundo, eu às vezes duvido que o povo tenha a voz de Deus, é que homem às vezes se sente mais realizado se ao invés de dizer parabéns ele fala coitado!”; “Da vida não levo nada, do jeito que a vida vem, depois de fechar os olhos não adianta ser alguém. Da vida não levo nada do jeito que a vida vem depois de fechar os olhos eu não sou ninguém”.
São poucas letras no cancioneiro brasileiro que possuem o privilégio de conter versos tão eficientemente construídos e tão filosoficamente verdadeiros. Pois deixemos de vaidades e egoísmos porque da vida não levamos nada, do jeito que a vida vem, já que depois de fecharmos os olhos não adianta ter sido alguém.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Unknown disse...

Saga, (talvez) perfeita, infelizmente as pessoas talentosas, geniais, genuinamente inteligentes, neste país, são reconhecidas depois que morrem. Aplausos para esta belíssima crônica.