SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 12 de março de 2011

OS MENINOS NUS (Crônica)

OS MENINOS NUS

                                                                          Rangel Alves da Costa*


Bastava cair as trovoadas que as reinações da meninada tinham início. As chuvas que caíam, raras e abençoadas, pareciam despertar o sentimento festivo na gurizada.
Hoje não, porque dizem que é feio, é indecente, aos olhos de muitos mentalmente doentes pode se tornar apelativo, mas ontem tudo era diferente, pois criança podia andar completamente nua até já bastante crescidinho. Ninguém olhava com os olhos atravessados nem os pais tinham a preocupação que devem ter atualmente.
Verdade é que quando os pingos grossos e barulhentos começavam a bater no telhado, descendo pelas pingueiras, jorrando pelas goteiras, era o chamado para que a molecada tirasse a pouca roupa que vestia e saísse pelas ruas correndo, com toda a nudez da inocência, comemorando a chegada das águas tão preciosas e para se banhar com fartura.
Menina não, pois mulher fêmea, como se dizia por lá, tem que viver no recato desde pequenininha. E com razão, pois certamente não tinha nenhum cabimento fazer o que os meninos faziam em plena nudez.
Quando mais chovia mais a molecada corria pelas ruas de braços abertos, apostavam carreiras, juntavam água em pequenos vasilhames para molhar o outro debaixo da chuva, caçavam a velha bola de plástico e iam jogar o futebol dos pelados.
Não satisfeitos com as danações que faziam nas ruas e calçadas, extravasando conjuntamente a alegria pela chuvarada boa, ainda seguiam descendo os becos, cortando caminhos para ir tomar banho nas águas que já começavam a chegar aos tanques e barragens. Pareciam imunes aos perigos das águas novas.
Mas não era tudo pacificamente não, pois ao barulhar da chuva se juntavam os gritos saindo por trás das portas e janelas entreabertas: “Venha já pra casa moleque safado”, “Você vai gripar filho de Deus”, “Essa noite você não dormiu de tanto tossir e agora quer ficar aí nessa chuva, entre pra casa agora mesmo, ande”, “Ou você vem agora mesmo se enxugar e vestir uma roupa ou seu pai vai aí já já com um chicote de couro cru”.
Muitas vezes o pai ou a mãe cansava de tanto gritar e saá pelas ruas, debaixo da chuvarada, com ou sem sobrinha, procurando o molecote com um chinelo na mão. Bastava ele avistar e era pior, pois se danava a correr mais ainda e não tinha jeito de colocá-lo de volta, ao menos naquele momento de lúdica comemoração.
Donana, a viúva da cocada chegava a chorar de alegria e de saudades quando os meninos pelados passavam em correria pela frente de sua casa. Segundo ela, ali estava a verdadeira inocência, as brincadeiras sem maldades, a vida de criança realmente vivida.
E tinha saudades porque estava cada vez mais difícil de ver aquelas brincadeiras dos meninos pelados, fazendo suas festanças de corpo inteiro. O pior é que sabia que não duraria muito para aquilo tudo acabar, vez que o progresso inventava uma seriedade nas pessoas que estas realmente não tinham.
Zé do Boteco um dia cismou de fazer um abaixo-assinado para impedir que os pais permitissem que os seus filhos saíssem correndo nus pelas ruas em dias de chuva. Segundo ele, tinha que esconder suas duas meninas pra não ver aqueles moleques pelados.
Tião não assinou porque não sabia, mas disse que se fosse pra chover mais até ele ia correr pelado. Nefânio disse que só assinava se ele provasse que nunca tinha tomado também banho pelado pelas ruas.
Não conseguindo as assinaturas necessárias, foi falar com o padre, o delegado e o prefeito. O político disse que aquilo era tradição e ademais um dia certamente precisaria dos votos daqueles danadinhos. O padre acabou confessando que até ele tomava banho nu nos fundos da sacristia e tinha a maior vontade do mundo de também sair correndo pelado pelas ruas. Zé do Boteco se benzeu e desistiu da implicância.
Mas um dia, depois de mais de ano sem chover e com uma seca danada de causar sofrimento em homem e bicho, o próprio Zé do Boteco sentiu saudades de ver aqueles meninos em correria. E chorou lembrando sua infância, dos tempos de menino pelado, dos tempos que tinha chuva, de outros tempos.
E fez uma promessa que daria uma bola novinha de plástico aos meninos assim que chovesse. E no outro dia começou a trovoada, mas não se viu mais nenhum menino pelado tomando banho de chuva. Já eram outros tempos...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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