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quarta-feira, 30 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 68 (Conto)

DESCONHECIDOS – 68

Rangel Alves da Costa*


Verdade é que Pureza havia tido uma visão de um moço chegando num barquinho de braços abertos e chamando apaixonadamente pelo nome de Soniele e misturava esse nome com outras expressões do tipo “a mim”, “jasmim”, coisa parecida.
E logo a velha conhecedora dos mistérios e encantamentos ribeirinhos chegou à conclusão de que alguém já falecido procurava desesperadamente abraçar sua amada. Se já havia falecido, os braços abertos no barquinho da morte significavam um convite para que ela o acompanhasse onde estivesse. Estava chamando a mocinha para a morte.
A verdade era essa. E se o amor era tanto de ele andar assim tão desesperado, ao menos que diante da presença da nudez do corpo tão querido e amado, aquele chamado aflito fosse transformado num prazer ilusório e momentâneo, vez que até os mortos desnorteiam de seus objetivos diante da beleza nua do corpo vivo ainda desejado.
Sem medo algum, completamente ciente do que iria fazer, e para o bem ou para o mal, seja lá o que fosse perante tanto mistério, Soniele atendeu ao pedido, fez como a sábia senhora mandou.
Assim, ali mesmo na beira do rio, sem se preocupar se os trabalhadores do outro lado pudessem enxergá-la ou não, se despiu totalmente e foi entrando nas águas com o seu corpo escultural. Uma prostitua com o corpo de deusa, talvez o sol tenha ficado imaginando, contente em poder se estender sobre aquela chama morena.
Deitou nas águas e deixou-se tomar completamente. Em seguida mergulhou muitas vezes e depois resolveu deitar novamente numa parte mais rasa, onde não ficava totalmente encoberta. De olhos fechados, sentindo apenas os sons da natureza, foi adormecendo até viajar num sonho distante. E foi sendo arrastada por mãos invisíveis para dentro do rio e assim ficou por uns dez minutos, totalmente encoberta, como se tivesse desaparecida.
E mais tarde foi flutuando, subindo novamente, com o corpo espalhado e ofegante, até a lâmina d’água e arrastada até onde estava anteriormente. E começou a despertar do sonho quando Carol chegou ali assustada e gritando, perguntando se tinha acontecido alguma coisa para estar assim toda nua deitada no rio.
E Soniele respondeu, ainda como se estivesse distante dali, ainda entre as nuvens ou noutro lugar: “Estava sonhando. E sonhei com alguém me possuindo, fazendo sexo comigo. Não consegui ver o rosto dele, mas era alguém conhecido. Aquelas mãos que me seguravam eram conhecidas, aquele cheiro, aquele perfume, tudo era conhecido. Fiz amor Carol, me entreguei apaixonadamente a um desconhecido...”.
“Vamos, minha amiga, levante já daí e vista a roupa. Seu corpo está todo vermelho, parece até que está suando dentro da água. Venha aqui”. Assim que vestiu a roupa Carol se aproximou um pouco mais e disse-lhe que estava com os olhos em brasa. Colocou a mão no seu pescoço e não teve dúvidas que a amiga estava queimando de febre.
“Vamos entrar pra tomar um remédio agora mesmo. Você levantou dessa água tomada de febre. Não bastasse a aparência de sua pele e esse braseiro nos seus olhos, bastou tocar em você pra sentir que está doentia. Vamos que além dos chás tenho remédio de farmácia que também vai servir muito. Garanto que mais tarde você já estará totalmente recuperada”. E começou a conduzir Soniele, toda enrolada como se estivesse com intenso frio embaixo de um calor de mil sóis e com o corpo visivelmente tremendo.
Soniele passou a tarde inteira enrolada e se queixando de dores na cabeça e pelo corpo. Tremia de não acabar mais. Pediu mais remédio porque não queria faltar ao encontro dos pescadores na beira do rio logo mais, sob o comando de Pureza, que prometia fazer um trabalho de afastamento das coisas negativas que vinham assombrando o lugar. Disse que a amiga a acompanharia e que levasse sem falta uma roupa suja. Ela mesma levaria a roupa que tinha usado pela manhã.
Na boquinha da noite, como se dizia por lá, e Pureza já estava fazendo a purificação do ambiente. Primeiro se ajoelhou e fez orações para os santos de sua devoção, pediu a intervenção divina para o acolhimento dos seus pedidos e a sua licença para invocar entidades das águas e da terra naquela noite de grande importância para a sobrevivência da paz no lugar.
Em seguida trouxe um cesto cheio de folhas e flores do campo e espalhou tudo ao redor num grande círculo, divisando com as águas do rio. Depois colocou troncos para acender uma fogueira mais tarde, trouxe uma bacia grande para logo mais encher de água, fez um pequeno monte com areia de vários pontos da região e deixou um lugar apropriado para serem colocadas as roupas dos ribeirinhos.
E depois de tudo colocado no seu devido lugar, posicionou-se no centro do círculo e levantou os braços para cima invocando os deuses da natureza e as forças positivas da noite. A lua, que já surgia encoberta pelas nuvens, rompeu o véu e se fez imensa e linda como jamais havia sido vista por ali. Nas águas, o brilho da lua formava um leve tapete brilhante e silencioso. Por enquanto tudo reinava maravilhosamente.
A não ser o corpo da mocinha Soniele, que parecia querer derreter de dores, febre e queimação.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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