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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 22 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 60 (Conto)

DESCONHECIDOS – 60

Rangel Alves da Costa*


As obras de construção da igrejinha iam de vento em popa. Os trabalhadores abriram uma picada pelo outro lado da serra de onde faziam subir todo o material necessário. Mas o coronel, com a esperteza que lhe era peculiar, mandou que um grupo de pedreiros e serventes ficasse ali trabalhando na beira do rio mesmo, levantando uma pequena casa de veraneio para ele e sua esposa Sofie. E certamente para os amigos convidados.
Comparando-se à riqueza do coronel, a casa encomendada até que era modesta. Exigiu apenas quatro quartos, três banheiros, cozinha, uma sala ampla e uma varanda maior ainda, sendo a casa toda rodeada de telheiro. Aí seriam colocadas as cadeiras de balanço e as redes. E tudo defronte ao rio, na maior paz do mundo. Ao menos era assim que pensava.
Diversas vezes o coronel convidou a companheira para visitar o andamento das obras. Ela, contudo, insistia em deixar que as coisas se adiantassem um pouco mais para dar uma volta naquele pedaço de rio, que já conhecia de outros tempos. Na verdade, o que ela realmente queria era ter a companhia da viúva Doranice naquela visita de inspeção.
Por diversas vezes telefonou para Yula pedindo para falar com a viúva. A cada ligação aumentava o tormento entre as duas. De um lado, Sofie contando sobre a casa em construção, sobre a igreja que já estava sendo erguida, sobre planos de inauguração do templo e de uma semana maravilhosa que passariam tomando banho de rio e saboreando peixe fresquinho.
Do outro lado ficava Dona Doranice louca para atender logo aos chamamentos da amiga e se dirigir novamente para aquela região de beira de rio, próximo a Mormaço. Contudo, explicava sempre, os afazeres eram muitos, principalmente porque havia encontrado muito mais problemas do que imaginava. A pobreza era avassaladora e o povo carente demais precisava de toda esmola para sobreviver.
Acalmava a amiga Sofie dizendo sempre que quando as portas da igrejinha fossem colocadas e ela já estivesse em condições de receber os acabamentos finais, então poderia ligar no mesmo instante que ela e seu grupo se deslocariam imediatamente para lá de onde estivessem. E acerca da casa que o coronel havia mandado construir dizia que já estava morrendo de inveja só de pensar naquela paz diante da natureza encantadora.
Realmente, os problemas encontrados pela viúva para resolver desde que saiu de Mormaço no micro-ônibus adquirido foram maiores do que os imaginados. Sensível como ela era, não podia ver uma comunidade pobre de beira de estrada que ia até lá tentar minimizar um pouco a situação.
Decidida a doar o mínimo possível de dinheiro vivo, em espécie, vez que segundo ela matava a fome num instante e depois não acabava resolvendo nada, muitas vezes tinha que arranjar como podiam para permanecer nos locais durante dois, três dias, até que casas fossem reparadas, alimentos fossem comprados, postos de saúde equipados, igrejas reformadas, estradas abertas, cisternas construídas. Chegava a brincar dizendo que era melhor se tivesse trazido consigo uma construtora, um mercadinho e um comércio inteiro.
Contudo, um inusitado problema se constituiu num dos mais difíceis de resolver. Eis que o cozinheiro, todo cheio de frescura e sotaque francês inventado, cismou porque cismou que não colocaria as mãos nas iguarias daquela região de jeito nenhum. Queria porque queria, a todo custo, que colocassem sempre à sua disposição salmões defumados, bacalhau europeu, ovas enlatadas de peixe, carne de búfalo argentino.
Negava-se, pois, a tocar em carne de bode, de carneiro, de galinha caipira, de ovelha e de qualquer tipo de caça. Não queria nem chegar perto de buchada, sarapatel, rim, fígado, rapada, toucinho de porco e outras comidas próprias daquela região. Contudo, não se separava de uma garrafa de cachaça misturada com raiz de pau, como angico e umburana. E tomava a cana sempre acompanhada de um pedacinho de tripa assada.
Aonde chegava de ônibus, a comitiva, e principalmente a viúva, era logo cercada pela criançada descalça, suja, quase sem roupa, cabelos desgrenhados e olhos bem grandes e acesos. Parecia uma família de barrigudinhos sorridentes e barulhentos, cujas feições bonitas contrastavam com a miséria em que viviam.
As mulheres, geralmente de lenço amarrado na cabeça, ficavam como que se escondendo pelos cantos dos casebres quase caindo. Era uma vergonha sem explicação, pois não teria cabimento que aquela gente sofrida tivesse qualquer coisa a esconder, senão uma tristeza infinda e uma dor sem gemido.
E Doranice olhava para todos e se reconhecia como conterrânea, como gente daquela região, como pessoa que também cresceu sofrendo. Não era muito diferente sua vida de infância não. Quando criança era também barrigudinha e cheia de vermes de tanto comer barro da parede. Tudo ainda era muito vivo na sua memória, mesmo depois de tantos anos.
Na presença do povo não, mas quando tinha um tempinho de ficar sozinha começava a pensar na situação daquele povo e começava a chorar. Somente ali sabia o quanto era difícil mudar ao menos um pouquinho daquela situação, mas também sentia quanto ajudava com qualquer coisa que pudesse oferecer.
Estavam distribuindo um carregamento de cestas de alimentos quando chegou uma moça com uma câmara na mão perguntando se podia filmar aquela senhora que estava fazendo tanta caridade na região, pois a fama de beneficente da viúva já ia longe.
“Pois não minha filha, como é o seu nome?”, perguntou Doranice à moça com a filmadora. E esta, estendendo a mão para cumprimentar, afirmou: “Meu nome é Cristina. Sou jornalista de Nova Paulo, mas estou por aqui ao mesmo tempo passeando e vendo e sentindo a vida desse povo”.
Os olhos da viúva brilharam de surpresa e satisfação.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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