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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 14 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 52 (Conto)

DESCONHECIDOS – 52

Rangel Alves da Costa*


O pássaro de olhos de fogo e bico afiado realmente não estava muito longe. No passo de Aristeu, o profeta, tinha descansado asa assim que avistou o errante se acomodando numa pequena gruta, logo atrás de uns barrancos por trás do rio, na mesma margem onde morava João pescador.
O profeta sabia muito bem que enfim havia encontrado o rio, havia chegado ao palco onde tudo se revelaria, segundo a crença na sua profecia. Restava agora encontrar um meio de se alojar por ali, fixar moradia por algum tempo esperando os sinais e os passos da revelação, que não viria antes de importantes acontecimentos e transformações naquele lugar.
Ademais, agora plenamente confiante no seu guia, o profeta estava esperando o pássaro amigo aparecer para indicar onde deveria ficar. Como ele havia passado o dia inteiro sem ser avistado no alto nem voando ao redor, e tenha sido procurado até onde pôde seguir, agora não lhe restava nada a fazer senão aguardar o seu retorno.
Por isso que tinha decidido passar a noite naquela gruta, perto do rio, mas não necessariamente à vista dos moradores da região. Não podia e não devia se misturar de jeito nenhum com aquele povo, com ninguém, com nenhum morador. Acaso se juntasse chegariam as perguntas e mais perguntas, as desconfianças e tudo poderia ser colocado a perder.
O que ele não sabia é que jamais reencontraria seu pássaro guia, já morto e desaparecido nas águas. Talvez somente depois soubesse as causas e como se deu essa morte, mas por enquanto tudo ainda permaneceria misteriosamente inexplicado. Entretanto, o que nem de longe ele imaginava é que o outro pássaro, o que carregava maldade em cada distância do seu voo, não havia sido destruído ou sumido de vez como ele acreditava.
Há uns cinqüenta metros de onde o profeta acabou ficando para passar a noite, o pássaro silenciosamente estava atento, com os olhos sem brilho algum, mas sempre voltados para aquele local, na parte mais elevada de uma grande árvore. De lá, olhava e mirava o profeta deitando no chão e colocando a cabeça em cima de uma pedra, até fechar os olhos. O errante ainda adormeceu, mas o pássaro parecia feito pedra com seus olhos estáticos e bico ainda sujo de sangue.
Ainda àquela hora, mas lá pras bandas da margem do rio, os dois amigos pescadores, João e Quelé, se dirigiam embaixo da lua triste em direção à casa do companheiro misteriosamente falecido. Passar a noite velando os mortos era tradição no lugar e não havia uma pessoa sequer, por menos ajeitada na vida que fosse, que não recebesse dos amigos, vizinhos e até estranhos essa última homenagem.
Velório por toda aquela região, principalmente no mundo ribeirinho, era festa da tristeza e da despedida, como diziam. Festa porque a morte não deveria ser encarada como um fim de mundo, mas apenas como uma passagem para o além após o dever cumprido. E festa também porque o a pessoa morta seria homenageada com o pranto, com a tristeza sincera, com os corações em aflição. O falecido deveria ficar contente com tais gestos e procedimentos, por isso mesmo era festa de despedida.
Naqueles momentos, com o corpo estendido na sala, tendo por trás uma cruz com Cristo de braços abertos e velas acesas ladeando todo o corpo, as pessoas começavam a falar sobre as amizades com o defunto, os momentos vividos em sua companhia e realçando sempre o seu lado bom e humano. Depois de muito choro e desmaios, os parentes iam se acalmando e sentavam para receber os pêsames de todos aqueles que chegavam.
E um pouco mais tarde, quando o fato já não causava tão visíveis prantos e lamúrias, os remédios e chás já haviam acalmado os nervos mais abalados, então era aberta uma garrafa de pinga, mais uma e várias. E do lado de fora da casa, geralmente em torno de uma fogueira acesa, bebem o morto, como se diz por lá, e de repente começa a surgir uma ou outra piada. Já perto do amanhecer, quando grande parte dos beberrões já está meio de fogo, chegam até mesmo a cantar, a aboiar, a puxar uma música numa sanfona ou violão. A desculpa é sempre porque o morto gostava dessa música, aboiava isso ou aquilo. E com mais algumas doses já querem ressuscitar a pessoa e tudo o mais.
Se Climério tivesse mais amigos talvez também fosse assim. Contudo, onde morava quase não tinha vizinho, somente uns casebres de pescadores ali e acolá, com pouca gente mesmo ao redor. Os moradores mais afastados já estavam chegando apressados para lamentar o ocorrido e prantear o amigo. Era gente caminhando entristecida na beira do rio, outros sentados nos barcos ancorados, e um simplesmente olhando a lua se escondendo. Que tristeza danada tudo aquilo...
Todo mundo fora da tapera, pois lá dentro não cabia, além do morto estirado numa esteira e tendo por cima uma coberta, quase ninguém mais. Era casinha de ripa com apenas três cômodos, a entrada, a parte de trás e um quartinho. Assim que João entrou e levantou o pano para olhar o amigo, percebeu que ele havia sido banhado e estava com uma roupinha mais decente. O olho furado estava tapado e nem aparentava tão miseravelmente abandonado assim.
Quando deitou novamente o pano sobre o rosto e saiu para se refrescar e espairecer um pouquinho, João encontrou Pureza e foi logo perguntando: “Quem foi que limpou e deu banho no nosso amigo?” E a senhora respondeu:
“Foi uma mocinha que passou a morar por aqui faz pouco tempo. Ninguém sabe direito quem ela é, além de ser muito bonita e simples, mas dizem que o nome dela é Soniele. Isso mesmo, o nome dela é Soniele...”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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