SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 23 de março de 2011

A GRANDE ORDEM DOS APROVEITADORES (Crônica)

A GRANDE ORDEM DOS APROVEITADORES

Rangel Alves da Costa*


Documentos encontrados na Biblioteca de Clancy apontam para a existência, durante o período mais efervescente da Europa medieval, de uma ordem bastante peculiar, denominada A Grande Ordem dos Aproveitadores.
Formada por cavaleiros desempregados, preguiçosos e adeptos do bon vivant, sem qualquer labuta honesta que justificasse a existência, a Grande Ordem tinha como lema “É sempre melhor o que é dos outros”. No estatuto elaborado por um tal Jacques Berón, logo no preâmbulo se lia:
“Somos parte de um povo bom e humanitário, trabalhador e honesto, mas sabemos que nem sempre teremos às nossas mãos tudo o que desejamos. Daí que são gestos louváveis tanto pedir como usufruir ao máximo daquilo que é dos outros, pois os outros, segundo as leis naturalistas e divinas, são nossos irmãos e têm de nos acolher”.
Para fazer parte dos quadros da Grande Ordem não havia exigências maiores, podendo ser rico, pobre ou remediado, mas tendo que comprovar que seguiria com fidelidade os objetivos e o estatuto. Contudo, era primeira exigência que o postulante passasse por um ritual de iniciação, consistindo este em provar que se aproveitou o máximo do maior número de pessoas em tempo razoável, como forma de demonstrar esperteza e malandrice.
O aproveitar-se do outro não tinha nenhum mistério, significando mesmo usar de todos os tipos de ludibriações para tirar do outro aquilo que ele dispunha no momento. E isto era feito, por exemplo, escondendo os charutos para pedi-los aos outros; aproveitar que estavam fumando e pedir que deixassem umas baforadas; chegar às tabernas e encostar-se àquele que estivesse bebendo e, após ganhar sua confiança, beber à vontade e por conta do outro; viver com a cara mais triste do mundo, reclamando de tudo na vida, de modo que os outros tivessem pena e fizessem alguma doação.
Mas outras safadezas ainda faziam parte desse rol de aproveitamentos. Muitos se aproveitavam da fragilidade das pessoas doentes, delas se aproximavam carinhosamente, cuidando e fazendo agrados, mas sempre encorajando o espírito frágil a incluí-los no testamento; se encontravam duas pessoas criando inimizades, logo puxavam o saco do mais rico, colocando-se à disposição, de modo que mais tarde pudessem cobrar a amizade sincera; se percebessem que estava havendo uma festança, procuravam logo entrar na surdina, às escondidas ou fingindo que foram convidadas e sempre eram vistas com copos de bebidas e pratos de comidas.
Segundo a Grande Ordem, era terminantemente proibido que os seus cavaleiros pretendessem se arrepender e procurar viver honestamente, trabalhando como todo mundo, esforçando-se nas labutas mais árduas, deixassem de mentir e de tirar proveito em tudo e contra todos, de repente esquecessem que o mundo é dos mais espertos e que a esperteza se constitui no meio mais eficaz de se obter o máximo com o mínimo de esforço. Seria crime os aproveitadores deixarem de aproveitar o máximo do que era alheio.
Contudo, até os mais corruptos, salafrários, desonestos, mentecaptos, preguiçosos, vagabundos, mentirosos e falsários se revoltaram quando uma nova classe de pessoas quis se associar como cavaleiros beneméritos da Grande Ordem. Não podiam aceitar, diziam eles, que pessoas desonestas demais quisessem fazer parte de uma Ordem que era apenas de aproveitadores, quando deveriam se associar a uma ordem voltada apenas para os corruptos.
Os aproveitadores defenderam então que a classe dos políticos, governantes e todos aqueles que faziam parte da elite estatal, deveria fundar uma associação de ladrões e correlatos e não fazer parte daquele núcleo da mais pura inocência diante deles. Se estas pessoas se misturassem aos praticamente inocentes, estes tenderiam a se enlamear eternamente. Aceitavam, contudo, pastores e bispos das igrejas ditas evangélicas, que segundo eles, em nada se diferenciavam dos mais qualificados aproveitadores.
Mas um dia, não se sabe como, foi admitido aos quadros um novo cavaleiro que ninguém sabia ao certo dizer qualquer coisa sobre a sua procedência. Mandaram investigar e descobriram que era um puxa-saco, um exímio bajulador de autoridade com poder. Pronto, Não houve mais discussão, e o homem foi eleito Venerável da Grande Ordem.
Não estou inventando nada. Tudo está lá na Biblioteca de Clancy para quem quiser comprovar o que digo. Sobre a existência dessa biblioteca aí é outra coisa.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: