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sábado, 26 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 64 (Conto)

DESCONHECIDOS – 64

Rangel Alves da Costa*


Foi no carro que estava sendo utilizado pelos bandidos que Dona Doranice decidiu voltar à cidade com dois objetivos principais. Primeiro procuraria a delegacia para prestar informações sobre o ocorrido. Depois providenciaria mecânicos para irem, ainda àquela hora, com quase tudo já escurecido, reparar os danos causados no seu micro-ônibus.
A polícia foi rápida e imediatamente recolheu o corpo do bandido. Quanto ao que foi dito e as ameaças feitas, o delegado disse que era melhor deixar isso pra lá porque não queria mexer num vespeiro. Se havia político envolvido, até ele temia. Estava ali como autoridade policial, mas só era delegado para determinadas pessoas, vez que tinha ordens expressas para não mexer um só dedo nesse e naquele outro. Tudo político e sua corja. Foi o que disse. Acentuou ainda que seria bom não desconsiderar as ameaças, pois por ali só tinha pistoleiro a mando de político safado.
E disse mais, pois afirmou que eles, os grandolas, se resolviam entre eles mesmos, na base da traição e da falsidade. Pequeno ou estranho que quisesse pisar de bota naquele lamaçal corria risco de perder as botas e a vida. Eles eram assim porque não sabiam dar significado às suas ambições senão através da violência. Por isso é que procuravam manter seus rebanhos de gente num curral, que era pra ter tempo de colocar o ferro no fogo para depois ferrar cada um. E as marcas podiam ser vistas naqueles corpos alquebrados e famintos.
Dona Doranice quis dizer o que pensava disso tudo, porém achou melhor cuidar de sua vida. Sobre isso conhecia demais e era exatamente isso que sonhava que um dia acabasse naquelas terras e perante os seus conterrâneos. Mas sabia como tudo funcionava por ali. Era melhor seguir em frente, mesmo que os tais grandolas se sentissem pisados em seus calos.
Diante da exaustão, do medo e do nervosismo na maioria dos integrantes da comitiva, ainda assim seguiram viagem naquela mesma noite. A jornalista Cristina perguntou à viúva se poderia sentar um pouco a seu lado e ouviu: “Oh, minha filha, bem sei que ainda não tivemos tempo suficiente para conversar quase nada sobre nós duas e sobre esse trabalho de ajuda que estamos desenvolvendo. Mas acho que chegou a hora. Sente aqui”.
Assim que sentou, a jornalista fez uma observação: “Mesmo naqueles instantes de sufoco e agonia e deitada no chão, não pude deixar de ouvir a senhora falando no nome do coronel Demundo...”. “Demundo Apogeu, foi esse o nome que citei para amedrontar aqueles bandidos. E surtiu efeito. Você também conhece o coronel e sua esposa?”.
“Não muito Dona Doranice, quase nada, mas apenas o suficiente para ficar com uma impressão muito grande desse senhor. E impressão positiva e negativa, pois não se deve esquecer o porquê desses latifundiários serem chamados de coronéis. Porque dão flores às suas esposas certamente não será. Contudo, diante das cenas que presenciei passa a prevalecer a impressão até de uma pessoa lutadora, porém sofredora e amargurada. Foram cenas tão difíceis as que presenciei e que guardo registradas...”.
“Oh, minha filha, mas foi alguma coisa que eles não me disseram?”, perguntou a viúva. E Cristina procurou responder:
“Não sei Dona Doranice, mas o que presenciei diz respeito à morte do filho dele. Ele falou sobre isso? É uma história tão complicada e triste, já naquela idade e tendo de suportar velar o filho morto pelas próprias mãos. Uma história envolvendo juventude que faz o que não pensa bem e um amor não correspondido. E imagine só a senhora que o rapazinho se matou porque uma mocinha, uma prostituta chamada Soniele, não queria se entregar somente aos braços dele. Deitava quase de graça com outros homens e rejeitava-o. Num dia de mais uma bebedeira ele a agrediu ali mesmo no cabaré e foi a gota d’água, pois quando ela saiu do hospital arrumou as malas e partiu. Então ele fez a besteira, tirando a própria vida. Mas acho que tem muito coisa nessa história, tem coisa escondida no meio disso tudo que ainda não descobri, mas farei isso com certeza. Fui nos passos da Soniele e não consegui encontrá-la. Disse que ia para um lugar distante e não foi, preferindo ficar pelos arredores de Mormaço mesmo. Ela ainda está por lá, só que num lugar que ainda não descobri...”.
Ouvindo tudo atentamente, tentando juntar retalhos na cabeça para ver se compreendia melhor a história relatada, Dona Doranice indagou como a jornalista havia tomado conhecimento desses fatos todos, até com pormenores.
“Minha boa senhora, primeiro os olhos viram e depois os ouvidos ouviram. Tive a permissão do coronel para acompanhar o velório e tirar algumas fotografias daquela ocasião. De repente as pessoas da sala começaram a dar passagem a uma senhora que vinha chegando. Achei uma mulher bonita, ainda que muito entristecida e com sinais nos olhos vermelhos e inchados de quem havia chorado muito. Verdade que estava vestida um pouco espalhafatosamente para a situação, mas combinando para o que vim saber depois que ela empresariava. Aquela mulher bonita e estranha era a própria mãe do morto, o que fez com o coronel ficasse quase sem se conter. Mãe biológica do filho que foi criado pela esposa do coronel, que também era pai...”.
E a viúva interrompeu para perguntar se o nome daquela mulher era Sofie, pois já a conhecia. Cristina confirmou e prosseguiu: “Até aí tudo bem e acho que também contaram que Dona Sofie era dona do cabaré onde Soniele vivia. E tudo isso eu sei por que a própria Madame Sofie, à época chamavam assim, me contou. Ao menos foi isso que acreditei ter ouvido. Mas alguma coisa me diz que ela não me contou tudo não, que tá faltando alguma coisinha que pode mudar essa história toda...”.
“E isso só será possível encontrando a mocinha, a tal da Soniele, não é mesmo? Mas onde deverá estar essa menina?”, perguntou a viúva, tentando imaginar uma possível situação. Mas em seguida questionou novamente. “E o que você acha que ainda não descobriu?”.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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