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sexta-feira, 24 de maio de 2013

A PEDRA DE CALCUTÁ (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Mário Quintana me chega com seu verso simbólico e sentimental. Sempre gostei de sua poética diferenciada, seus versos brancos, seu desapego ao verso arquitetônico e floreado. Leio-o como uma prosa que acaba sendo poesia. E precisamente pelo humanismo contido em cada palavra.
Pela manhã, até casualmente, acabei lendo uma de suas preciosidades: Hoje me acordei pensando em uma pedra numa rua de Calcutá. Numa determinada pedra numa rua de Calcutá. Solta. Sozinha. Quem repara nela? Só eu, que nunca fui lá. Só eu, deste lado do mundo, te mando agora esse pensamento... Minha pedra de Calcutá!
Pois é Quintana, hei de confessar que também vivo pensando em muitas pedras de Calcutá, de Jerusalém, de uma cidade siberiana de nome tão difícil de pronunciar, de Santa Cruz de la Sierra, de Poço Redondo. Minha querida Poço Redondo e suas pedras no meu olhar. Que se deseje ou não que seja assim, mas elas estão lá a este momento, soltas, esquecidas no meio das ruas.
Quintana, meu bom amigo, saiba que somente a solidão e a distância nos trazem a pedra de Calcutá. E todas as pedras. É a solidão que nos faz fechar os olhos e viajar, partir e encontrar o desconhecido. É a distância que nos faz querer alcançar. Ora, se nada do que está em volta existe, é sempre vazio e imperceptível, então procuramos desbravar as profundezas da alma e através da mente chegar até onde jamais estivemos.
O acordar barulhento, rodeado de pessoas, com o necessário silêncio quebrado por sons indesejáveis, não nos permite avistar nenhuma pedra em nenhum lugar. Ao invés de encontrar a pedra distante estaremos nos deparando com as mesmices cotidianas. E por isso mesmo como é bom avistar a pedra de Calcutá. Um bom sinal de quietude espiritual.
Mas a pedra de Calcutá é também a moça bonita que um dia desejamos encontrar. Logicamente que vivemos encontrando jovens formosas, preciosidades femininas, perfeitos exemplares da feminilidade, mas nada como a moça bonita despertada no pensamento. Parece um sonho acordado, mas de repente nos vem à mente aquela feição angelical, aquele sorriso meigo, um encanto de mulher.
O psicanalista certamente diria que a moça bonita chega ao pensamento através do despertar do inconsciente, revivendo situações passadas. Mas não, pois apenas a pedra de Calcutá. Nunca a encontramos, conversamos ou nos olhamos nos olhos, mas ela existe. E tão humanamente possível que o pensamento se encanta diante de sua beleza. Chega a vê-la, senti-la, tocá-la.
E a pedra de Calcutá é avistada também nas vielas imundas e miseráveis, nos sertões empobrecidos e relegados pelos poderes, nas marquises com seus habitantes noturnos, nos descampados africanos tomados por restos ossudos de gente, nos fugitivos das guerras, nos modernos campos de concentração. Ora, as dores, os gritos, os horrores de lá são também sentidos por todos aqueles que estão distantes e que sentem suas presenças como pedras de Calcutá.
Eis que a pedra me chega ao amanhecer, ao cair da tarde, noite adentro, varando a madrugada. Tanta coisa longe, distante, desconhecida, para ser avistada. Vejo a flor mais bela do alto da mais alta montanha; olho o velho monge tateando as paredes escurecidas do eterno mosteiro tibetano; avisto o sacerdote, num tempo distante, subindo as escadas do templo do sol no império maia.
Menina triste à janela, deitando flor murcha à mão, peço desculpa por chegar assim sem avisar. Quem me mandou foi a pedra, quem me trouxe foi a pedra, aquela mesma de Calcutá. E com ela também estarei em ruas distantes, em estradas desconhecidas, em caminhos jamais seguidos, pois preciso sair de mim para viver outras vidas. Meus pés não pisarão na terra, mas lá estarei no pensamento, na mesma visão que me faz alcançar a pedra de Calcutá.
Por isso mesmo que não saio nunca de minha cidade, de minha amada Poço Redondo. As ruas de lá são quase todas de pedras soltas. Mas só preciso de uma. Aquela onde ninguém imagina que esteja. Mas está no meu pensamento, por cima da terra onde tanto ainda caminharei, num sertão distante que também é Calcutá. E também sou pedra de lá.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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