SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quarta-feira, 22 de maio de 2013

UM DOIDO, UM MUNDO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Conheci um doido. E doido de pedra, de falar sozinho, de fazer careta pro vento, de dar gargalhada ao ver alguém chorando, de encher a mão de barro e colocar na boca. Doido, insano, maluco mesmo.
Mas nem sempre assim. Questão de lua ou de sol, mas a verdade é que o danado de vez em quando parecia normal que só a pessoa comum escondida no véu da loucura. Nestes momentos, falava e ouvia, perguntava e respondia, dialogava com quem conhecesse.
Só tinha um problema. Mesmo não estando atirando pedra ou sentado o dia inteiro na pedra quente, ainda assim mostrava claros sinais de sua alienação. Sentia-se claramente isso quando ele conversava. Parecia dialogar normalmente, mas concebia as coisas, tudo que lhe fosse perguntado, de uma maneira totalmente maluca.
Sempre gostei do doidinho. Nunca temi aproximação ainda que em época de lua cheia. Diziam que ele estava num dia daqueles, querendo cuspir em todo mundo, avançar para rasgar a roupa, mas nada disso me preocupava. Eu chegava e era bem recebido. Levava um pacote de bolachão e ele comia quase tudo em segundos.
Depois de se empanturrar e ficar com o rosto inteiro esbranquiçado da massa espalhada, se enchia de um silêncio tão profundo que parecia cheio de sofrimento, de angústia, de aflição. Mas eu já conhecia essa história e então bastava dizer que no dia seguinte levaria mais e tudo voltava ao normal. Então eu aproveitava para indagá-lo sobre algumas situações.
Verdade é que já fui chamado de maluco por tanto conversar com doido. Nunca me importei porque o diálogo mantido com o lunático possuía grande importância num livro que eu estava escrevendo. Talvez os outros nem imaginem a riqueza trazida pelo irreal, pelo fantástico, pelo inconcebível expressado pelo doidinho.
Ora, se perguntado sobre o mundo, ele falava sobre o mundo, só que ao seu modo, na sua forma de pensar as coisas, de criar situações para explicar determinada realidade. Juntando fantasias, absurdos, maluquices mesmo, e também com floreios românticos e até poéticos, a verdade é que ia repassando situações inacreditáveis de se ouvir. Fatos, coisas e situações que realmente merecem ser respeitadas pela concepção diferente de tudo.
Perguntei como ele imaginava que as pessoas nasciam e ele respondeu: Toda vez que vem uma ventania, um vento forte demais que chega derrubando tudo, é porque vai nascer gente. Quando a mulher corre pra fechar a porta e a janela ele aproveita um descuido e entra com força de boca adentro, descendo pela goela e indo parar na barriga. E a mulher fica com aquele barrigão cheio de vento. Então ela fica com vergonha do povo e se aperta toda pra ventania sair. E é quando nasce o menino. Mas como já virou pedra lá na barriga, então é preciso que o marido tenha um trabalho danado pra ir batendo naquela pedra até ela ficar com perna, braço e cabeça. E depois bota um nome. Um nome de gente.
Perguntei como ele acreditava que o mundo tinha surgido, e ele não demorou a responder: O mundo nasceu da escuridão, da noite cega, do que havia de mais retinto. Não havia nada porque tudo era breu, sem que se pudesse avistar qualquer coisa. Não tinha nem gente nem bicho nem nada porque tudo tinha medo da escuridão. Mas bicho e homem já existiam sim, só que dormindo eternamente pra não acordar diante daquele breu. Mas um dia, não sei se foi homem ou bicho, despertou e abriu um olho. O danado do olho brilhou na escuridão. E de repente os olhos dos homens e bichos foram se abrindo de um jeito que mais parecia vaga-lume faiscando. Como tudo já estava mais claro com a luz de tanto olho aberto, logo avistaram uma porta. E uma pessoa correu e deixou tudo aberto. E lá fora tudo isso que a gente vê hoje.
Certa feita perguntei-lhe como via um doido, um louco, uma pessoa sem o juízo perfeito. E dele, do próprio doido, ouvi: O doido que é doido mesmo, desses que não tem um pingo de juízo na cabeça, quer fazer tudo direito, andar certinho, conversar com os outros, quer sempre ser uma pessoa normal. Mas todo mundo sabe que não é. Em todo momento e em todo lugar ele mostra que não tem um pingo de juízo, que guarda dentro de si a maior loucura. Endoidece se tem raiva, fica maluco por qualquer coisa besta. E depois ainda inventa que doido é quem faz diferente dele. Agora veja se eu tenho cara ou jeito de doido?
O que tinha era um mundo próprio, o seu mundo. E um modo totalmente diferente de explicá-lo.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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