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segunda-feira, 6 de maio de 2013

O TRONCO E A CAPELA DO ENGENHO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Quase mais nada resta do grandioso e imponente engenho. As casinholas de barro batido e cobertas de palha que serviam de senzala foram destroçadas pelos anos; da casa-grande restou as paredes largas e nuas, descobertas e maltratadas pelo tempo.
Das outras instalações do engenho, como a moenda, a casa das caldeiras e das fornalhas e a casa de purgar, somente os esqueletos ainda se poderiam avistar. Mas tudo caído, derrubado, destroçado. Não se sabe por que, mas o tronco dos castigos e punições continuava em pé.
E continuava no lugar não porque o novo proprietário daquelas terras assim quisesse. Tudo fazia para retirá-lo dali, utilizando até trator para arrancá-lo de vez. Contudo, não havia meio que o removesse. Parecia feito de ferro e enraizado de tal forma que nem se movia quando sacolejado.
Os mais velhos sabiam por que aquele tronco se negava a sair dali. Não diziam aos visitantes e citadinos para não ser desacreditados, mas a verdade é que tinham uma explicação envolta em mistério e dor. Segundo eles, o tronco ali permaneceria para servir como espelho e lição de um tempo onde gente era mais maltratada que animais.
Naquele tronco, negros rebelados eram amarrados e açoitados até a morte para servir de exemplo aos demais. Muito sangue espanou pela madeira grossa após as chibatadas dos algozes nos lombos dos rebeldes e fugitivos; muito pedaço de couro se desprendeu da pele escrava e se alojou na madeira envernizada de sangue. Negro teimoso tinha de deixar ali um  pedaço de sua cor, sua raça, sua origem. E quanta dor.
O tronco testemunhou o sofrimento, os gritos de dor, as agonias e aflições. E também o silêncio das almas agonizantes. E por isso mesmo, ao dificultar cada vez mais sua remoção, procurava eternizar a memória da escravidão e do seu sofrimento. Negava-se, pois, a ser removido para que uma página triste da história ficasse sem seu marco da brutalidade de um dia e fosse esquecida pelas novas gerações. Daí que petrificava toda vez que tentavam derrubá-lo.
Mas não só o tronco lutava para continuar como espelho e livro aberto de um tempo tão sofrido. Um pouco mais afastado dali, quase ao lado dos frangalhos da casa-grande, a capelinha continuava firme no seu lugar, parecendo mesmo que nada havia sofrido depois de tantos anos de construção. Porém, era exatamente o modo como foi construída que a fazia permanecer com a mesma feição de antigamente.
Capela pequena, com uma só extensão e um minúsculo quartinho ao fundo para servir de aposento ao vigário que ali chegasse para celebração de ofício. Um altar de pedra e meia parede atrás, esta contendo uma espécie de oratório também feito de pedra. Aliás, tudo ali era de pedra bruta, lavada nos barrancos do riacho que cortava as terras do senhor de engenho.
Pedras negras, lisas, cortantes dos lados, verdadeiros punhais na pele de uma pessoa. E dizem que foram distantemente trazidas, uma a uma, pelos escravos ali cativos. Os negros seguiam em duplas, acorrentados pelo pé esquerdo, sendo seguidamente chicoteados pelos feitores e outros algozes a mando do capitão do mato, que representava a ordenança do senhor.
Cada escravo trazia uma pedra por vez e ia depositando na parede já cimentada para tal fim. Assim, enquanto uns negros colocavam massa por cima das pedras, outros já iam chegando para acomodar cuidadosamente seu carregamento. E as paredes iam sendo erguidas na pedra praticamente nua, sem qualquer outro material de sustentação. Mas com um visgo que as tornaria quase indestrutíveis. O cimento do corpo negro dilacerado.
Contam que em meio à massa de ajuntamento e às pedras muito sangue negro, também pele e até pedaços do corpo, ficaram para sempre naquelas paredes. Enquanto trabalhavam, ali mesmo eram açoitados, feridos e jogados sem vida contra as paredes. E olhos, dentes, dedos, pedaços disso e daquilo, acabaram ficando ali para sempre. Colocados, misturados ao pequeno templo cristão.
Dizem que o sangue escravo ali espargido ou lançado em cuia jamais perdeu sua cor. Por mais que os feitores ordenassem limpeza mais os restos negros colavam às entranhas, escondendo-se nas junções das pedras. E foi por isso que durante uma celebração para a gorducha esposa do senhor, o vigário acabou revelando que também rezava missa para aquelas almas que avistava saindo das paredes.
E ainda estão lá. Tanto o tronco como a capelinha continuam no mesmo lugar. O tronco ainda estremece e geme nas altas horas da noite. E os gemidos só param quando cantos negros, quase gemidos também, começam a dolentemente entoar dentro da capelinha. São as almas negras querendo ser ouvidas para que ninguém esqueça aqueles tempos de dor.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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