SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 25 de maio de 2013

DAQUI A CEM ANOS OU MAIS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Atualmente estou com cinquenta, mas daqui a cem anos ou mais, muito mais, ainda não terei morrido completamente. O corpo desfalece, a vida se vai, o último suspiro será dado um dia, tudo terá um fim, porém apenas corporalmente.
E não terei morrido completamente porque deixo sementes guardadas nos vasilhames do tempo, deixo mapas protegidos nas garrafas que ainda não joguei ao mar, deixo letras rabiscadas em diários que um dia irão encontrar, deixo mensagens de vivacidade por todo lugar. E principalmente porque não nasci para morrer.
Nasci para a eternidade porque não me contento em realizar somente para o agora ou o amanhã. O passo por onde caminho um dia se apagará, mas não o caminho que construí nesse passo. Não atenderei a quem me chamar pelo nome, mas estarei naquilo que deixei construído. Quem me chamar me terá por aquilo que fui, pelo que deixei.
Daqui a cem anos ou mais, muito mais, ainda serei mais jovem, mais fortalecido, mais audaz do que todo aquele que ainda vai nascer e caminhar sem motivos, sem ter claros objetivos traçados na vida. Estarei ainda alimentando o que fiz enquanto o outro passa sem saber o que fazer. E estarei ali na estante, na palavra escrita, ensinando o caminho. E gritarei que cuidado com a curva da estrada, com o labirinto escuro.
Darei bom dia, boa tarde e boa noite, porque todos os dias fui amigo dos dias, das tardes e das noites. As madrugadas também foram amigueiras Compreendi o calendário, o relógio, cada segundo. Estarei ao lado de cada um na leitura, na reflexão, no pensamento bom, nas doces recordações. Eis que na vida vivida nada mais fiz do que planejar a presença da futura geração ao meu lado quando aqui eu já não mais estiver.
Não serei lembrado nos inventários de nada, nos testamentos de coisa nenhuma. Tudo isso pode ser rasgado. Que se conservem as fotografias e as molduras das realizações, os traços quase imperceptíveis do meu silencioso agir. Meu olhar e meu sorriso serão eternos porque sempre olhei e sorri para o amigo com afeto e sinceridade.
Estarei presente no nome, no ato, na palavra dita, na realização. Aquela palavra ainda será minha, aquele pensamento ainda será o meu. A quem duvidar o destino colocará diante de si um poema, um conto, um artigo, uma crônica, um livro meu. E logo verá que aquele velho escrito nunca esteve tão presente. E quem escreveu?
O que escrevo agora, e tanto e mais tanto do que já escrevi, serão os frutos que alimentarão minha eternidade, minha imortalidade. Imortal sou, eterno também, sem para tanto jamais precisar ter vestido fardão e regozijar-me falsamente de ter feito parte do grupelho conservador, ultrapassado e carcomido das academias. Estes morrem e são esquecidos. Eu não. Como diz Quintana, eles passarão e eu passarinho...
Hoje canto o sol e a lua, dou passo de valsa com a noite e as estrelas, estendo a mão ao entardecer convidando-o para o bailado. Fiz uma sonata para o tempo, um balé para as horas, uma ária para cada minuto, uma ópera para a vida. E nesse imenso salão de brilho e requinte que é o momento que se tem, infinitamente ecoarão os sons que deixei para todos. E as partituras estarão em cada manhã que se ouça a música da felicidade, trazida pelo sopro leve da brisa.
Quando mais adiante - daqui a cem anos ou mais - eu não estiver mais aqui, eis que parti sem nunca ter ido, minha casa continuará completamente tomada pelos meus mais de duzentos filhos. O solitário Lucas, a solteirona De Lourdes, o menino rei Gustavo, o seminarista Tristão, a professorinha Suniá, os meninos Totinha e Tiquinho, a fofoqueira Custódia, João Pescador, os amigos Yula e Carlinhos, Dona Doranice, Madame Sofie, a mocinha Soniele e tantos outros. Tantos filhos que tenho.
Todos os meus filhos também já nasceram imortais. Estão nos meus romances, são os meus personagens, são aqueles aos quais dei vida eterna. E porque os livros não morrem e aqueles que os povoam possuem moradia garantida na eternidade, então estarei dentro de cada um, falando pelas suas bocas, vivendo nas suas ações, sendo o que sou por aquilo que criei.
E em nenhum livro morro ao final, pois o leitor não quer nem a vida permitirá.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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