Rangel Alves da
Costa*
Durante a
República Velha (1889-1930), o poder político tinha nos grandes latifundiários
uma de suas mais importantes bases de sustentação. Os grandes proprietários,
bem como pessoas de muitas posses, principalmente aquelas instaladas no
Nordeste brasileiro, sustentavam, através dos currais eleitorais que mantinham,
os anseios políticos das classes dominantes.
O
reconhecimento dos favores políticos prestados por estes poderosos senhores não
tardou a chegar. Além do prestígio político e do mando absoluto nas suas
regiões, passaram a ser reconhecidos oficialmente a partir de 1831, com a
criação da Guarda Nacional que, dentre
outros aspectos, possibilitou a venda de patentes às elites regionais e
locais.
Logicamente
que os grandes fazendeiros, latifundiários, ricos comerciantes e outros
endinheirados, que já se sobressaíam com poder de mando em todos os aspectos da
vida interiorana, pagaram fortunas para adquirir o maior posto militar então
colocado à venda, que era a patente de coronel.
Contudo,
coronel apenas de patente comprada, quase como mera simbologia, sem ação
militar alguma, a não ser a oficialização do grande poder que já mantinha.
Poder este sobre o homem, sobre a terra, sobre animais. O coronel, no dizer da
história, era o dono do mundo ao seu redor. E também agente decisivo nas
decisões políticas, nos conchavos, na manutenção do poder de uma elite política
conservadora. Verdade é que o sertanejo passou a ter por coronel todo aquele
que possuía o poder político local.
Assim, o
coronelato, principalmente nordestino foi a junção de um poder quase ilimitado
já existente com o poder oficializado através da compra de patente militar, no
mais alto posto colocado à disponibilidade. A partir daí, o coronel passou a
ser verdadeiro dono do mundo, pois tudo na vida regional e interiorana tinha de
passar pelo seu crivo. Afinal, era também a voz do poder governante na região,
quando ele próprio não era possuidor de mandato.
Sua
influência era tamanha que mantinha jagunços e outros pistoleiros de mando sem
ser incomodado pelas autoridades. Ora, ele era a autoridade maior no seu chão,
no seu curral, na sua pastagem regional. Mandava matar, escravizava, subjugava,
submetia, pintava e bordava e ficava por isso mesmo. Bastava um recado ou
bilhete seu e a ordem tinha de ser atendida na hora. Cuspia no chão e antes de
o cuspe secar já queria o resultado pretendido.
O
coronelismo ainda hoje é lembrado como prática de poder e mando baseado na
dominação de um poderoso senhor perante o povo a ele submetido. O prestígio do
coronel era fruto de seu poder político e econômico, de sua forma de imposição
arbitrária perante a sociedade e instituições, bem como na forma de conduzir o
mando a ele conferido. Senhor de tudo e de todos, sua ordem só não possuía
imperatividade diante de desafeto com o mesmo coronelato.
Contudo,
foram as práticas próprias do coronelismo que marcaram mais profundamente o seu
percurso, e ainda guardando visíveis resquícios nos dias atuais. O voto de cabresto,
a fraude eleitoral, o clientelismo e o assistencialismo, os conchavos
políticos, a manutenção do poder a todo custo, a dominação e o jugo de pessoas
empobrecidas, além de outras manipulações e desmandos, eram práticas constantes
desse sistema.
O coronel
mantinha a população empobrecida como num verdadeiro curral, encabrestada ao
seu carrasquento desejo. Um povo sem estudo, sem força de reação, muitas vezes
tendo no poderoso seu único benfeitor, ainda que de forma degradante e
submissa. Um emprego qualquer, uma cesta de alimento, um remédio, uma esmola,
tudo isso era feito para que cada um ficasse devendo favor. E este era sempre
cobrado no tempo certo. E ao preço da honra.
A Guarda
Nacional deixou de existir em 1930, mas não significou o fim nem do coronelismo
nem de suas práticas. No Nordeste brasileiro, e principalmente nas regiões mais
distantes, a verve coronelista ainda perdurou com plena força e poder. E foi
subsistindo de tal forma que ainda deixa seus rastros pelas vastidões
interioranas. Não mais coronéis latifundiários, de imensas riquezas da terra,
mas coronéis da política, da diversificação econômica, e também do clientelismo
eleitoral, do voto ainda encabrestado e da desmedida barganha.
Tais
coronéis tiveram importante atuação no cenário cangaceiro do Nordeste. Durante
todo o seu percurso até a morte de Lampião, em 28 de julho de 1938, também
foram personagens dessa saga inglória para o destemido justiceiro das
caatingas. Contudo, no seu pedestal, apenas influenciava tomando partindo dos
cangaceiros, colaborando para manutenção da luta, ou se bandeando para a
legalidade, ou seja, colaborando com a polícia perseguidora.
Ora,
esperto como era, tendo de comer pelas beiradas do poder maior, de repente não
podia confrontar as ordens federais de perseguição aos bandoleiros das
caatingas. Mesmo assim, muitas vezes se manteve protetor do cangaço ainda que o
governo achasse que era colaborador das forças policiais. Fez o jogo duplo sem
ser dúplice no seu intento, pois proferia mentir ao governo a trair a confiança
do líder maior do cangaço.
E o grande
Capitão soube muito bem caminhar por essa vereda espinhosa. Virgulino Ferreira
da Silva, o Lampião, o maior líder cangaceiro que já pisou no chão sertanejo,
teve na inteligência e na astúcia algumas de suas características mais marcantes.
E tais aspectos o levaram a providencialmente tecer uma verdadeira rede de
apoiadores e colaboradores à sua causa. E dentre os patrocinadores dos rebeldes
estavam grandes e renomados coronéis nordestinos.
Mas tudo
numa troca de favores. O bando cangaceiro protegia o coronel da sanha inimiga
de outro poderoso da região, se comprometia a não atacar - e também defender -
aqueles protegidos pelo senhor, e em troca recebia preciosidades para a
continuidade da luta. Dinheiro, mantimentos, armas de diversos tipos e
calibres, vasta munição, dentre outros objetos, tudo isso era disponibilizado
pelo coronel ao bando.
Não é raro
se ouvir falar que alguns momentos de trégua do cangaço foram patrocinados por
coronéis. O poderoso mexia os pauzinhos e afastava a volante por uns tempos do
encalço cangaceirista. Do mesmo modo, mantinha uma extensa rede de informantes
para não deixar que os cangaceiros fossem surpreendidos por uma emboscada. E
também mandava dar fim a quem estivesse conspirando em desfavor do bando
protegido.
O coiteiro
era o mensageiro entre o coronel e o bando cangaceiro. Lampião chamava um cabra
de confiança e fazia chegar, através de bilhete, carta ou recado, aquilo que
desejava ver atendido pelo poderoso amigo. Mas nem sempre pedindo armas,
munições ou outros objetos, mas também como troca de impressões, fazendo
reclamações ou mesmo numa escrita amigueira. Os assuntos mais sérios eram
repassados verbalmente pelo coiteiro. Os segredos não podiam cair em mãos
indesejadas. E se conhece histórias de coiteiros que preferiram morrer a
revelar os segredos a ele confiados.
Lampião
era recebido e sentava à mesa desses poderosos. Se o outro era coronel, ele
também carregava a patente de capitão, e esta devidamente providenciada e
abençoada pelo santo político de Juazeiro, o Padre Cícero. O medo, verdadeiro
temor, fazia com que o poderoso recebesse o líder cangaceiro com o maior zelo
do mundo, colocando sempre à disposição o que este precisasse. Por seu lado,
sabendo da importância e necessidade daquele pacto, Lampião sempre se mostrava
à disposição, às ordens do coronel.
E assim os
pactos cangaceiristas, as estratégias de manutenção do poder cangaceiro e
coronelista e também as desconfianças de lado a lado, saíam dos antigos
casarões e adentravam nas selvas nordestinas, fruto de mundos tão diferentes e
tão próximos na realidade de então. O
coronelato oficial acabou em 1930 e o cangaço oito anos depois, em 38. Mas
coronéis continuaram existindo, enquanto que a morte de Lampião enterrava de
vez a maior das sagas nordestinas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Caro Doutor Rangel: O meu bom-dia
Ótimo texto sobre o Coronelismo. É uma matéria didática que muito vai me ajudar na elaboração do meu trabalho sobre o cangaço, pois, tudo envolve tudo, logo que detectamos violência desde a colonização do Brasil, passando pela atuação do coronelismo etc. etc.
Mas, dê uma olhada no seu segundo parágrafo que, salvo melhor juízo, na digitação foi trocado um número: 1831 por 1931. São coisas da sua rapidez ao digitar.
Abraços,
Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha - Bahia.
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