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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

SOBRE AMIZADES E OUTRAS INEXISTÊNCIAS


Rangel Alves da Costa*


Está escrito no Livro do Eclesiástico 6,14: Amigo fiel é poderosa proteção; quem o encontrou, encontrou um tesouro. Há sentido na afirmação bíblica, mas também há confirmação de que, comparando-o a um tesouro, logo o coloca como algo dificílimo de ser encontrado.
Ainda comparando verdadeiros amigos a tesouros, talvez nos tempos das piratarias existissem mais. Talvez hoje prevaleça uma arqueologia das amizades perdidas, esquecidas, ornadas em falsidades. Atualmente, até se pode sonhar desencavando uma botija de infinitas riquezas, mas o fiel amigo nem em sonho chegará.
Pressupõe-se - e apenas isto, pois ninguém realmente sabe mais o que seja um amigo leal e confiável - que o fiel amigo seja aquele que o indivíduo desejaria ter para confiar segredos, relatar sentimentos, ter a certeza de poder contar com sua ajuda nos instantes mais inusitados. Porém sabe, por experiência adquirida em outras situações, que nada disso existe mais.
Alguém já disse, e com razão, que a precisão reflete a amizade que o necessitado pode dispor. Os conscientes sabem muito bem que as ilusões da amizade possuem fronteira precisa. Experimente precisar para saber. Diferentemente ocorre quando o tempo é de fartura, é de bonança, quando os amigos surgem como formigas no mel.
Verdade é que o sujeito, depois de sentir o distanciamento e a frieza das pessoas, de saber da pouca importância que dão às suas palavras e sentimentos, acaba tendo de reconhecer a impossibilidade de ter amizades que sejam como extensão e escudo. Como afirmado, não é difícil fazer tais constatações, bastando que esteja em situação financeira inferior àquela apresentada noutros momentos.
E isto leva a outra constatação. Muitas amizades possuem o custo do poder, da riqueza, da influência, da situação do momento. Os interesses pessoais tornam desconhecidos em amigos, e em verdadeiros companheiros aqueles que nem a um cumprimento respondiam. Há no interesseiro uma descomedida facilidade em fazer amigos. Porém até que se sirva dos favores.
  Aquele cuja residência vivia apinhada de gente em festins, com todos o tratando como o maior amigo do mundo, logo conhecerá a outra realidade quando a situação financeira não mais permitir receber convidados. Amargará a solidão dos esquecidos. Contudo, certamente terá muito mais sossego.
Até mesmo em situações corriqueiras, no cotidiano dos dias, os ditos amigos somem diante da situação financeira do outro. E por dois motivos principais. Porque não pode mais contar com as benesses do outro e por medo que o desfalcado, confiando na amizade, lhe fale algum emprestado.  
Não é por acaso que o cão, até mesmo um cachorrinho vira-lata, foi alçado à condição de melhor amigo do homem. Eis que o sujeito reconhece que pode confiar muito mais num cachorro do que num ser de sua mesma espécie. Ainda que o seu amigo canino mais tarde o morda, o estrago será bem menor que o provocado pela falsidade.
Atualmente, por sarcasmo, de forma sempre debochada, se costuma igualar a homem mulher de amigo. Se não há amizade, logicamente que a mulher está sendo vista como a esposa de um sujeito qualquer, principalmente quando os seus dotes físicos estão ressaltados.
Nem aquele amigo de derramamento de lágrimas existe mais. Mesmo sabendo que o outro não modificaria nada sua situação, houve um tempo que o sujeito reanimava o seu espírito apenas pelo fato de encontrar o outro e derramar suas mazelas, suas tristezas, seus temores conjugais.
Tal situação é fielmente descrita numa música gravada pelo MPB4, “Amigo é pra essas coisas”: Salve!/ Como é que vai?/ Amigo, há quanto tempo!/ Um ano ou mais/ Posso sentar um pouco?/ Faça o favor/ A vida é um dilema/ Nem sempre vale a pena.../ O que é que há?/ Rosa acabou comigo/ Meu Deus, por quê?/ Nem Deus sabe o motivo...”
Do mesmo modo, há que se tomar apenas como quimeras os versos de Roberto Carlos dizendo do amigo de fé, do irmão camarada, amigo de tantos caminhos e tantas jornadas. Amigos assim são riquezas esquecidas nas botijas de outros tempos. Tais relíquias estão devidamente esquecidas no subsolo das inconstâncias e leviandades modernas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Maravilhoso e lúcido texto, Rangel. Bem, mas isto é chover no molhado; todos os teus escritos são assim... amigos? Não me iludo com eles há muito tempo. Mais triste, é quando a própria família nos trai.