SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 19 de julho de 2011

TEMPESTADE - 71 (Conto)

TEMPESTADE – 71

                          Rangel Alves da Costa*


Tiquinho achou muito estranho essa atitude de Teté em procurá-lo para saber do que estava precisando, como se o maluquinho tivesse lido o seu pensamento ou, por outro meio qualquer, já soubesse de sua aflição.
Se ao menos ele estivesse próximo aos outros, ao redor da professorinha, não seria demais que seu semblante confuso e entristecido testemunhasse sobre o seu difícil momento. Mas não, se manteve sempre afastado, na penumbra, de modo que o outro não tinha como enxergar seus olhos, observar sua feição, constatar algo sobre o seu aspecto de entristecimento.
Mas a verdade é que agora ele estava com o braço sobre seus ombros, num gesto de cordialidade amiga que até o deixava sem palavras. “Sinto que você quer me falar alguma coisa, está precisando me pedir alguma coisa, então chegou o momento. Não se acanhe meu bom menino, conheço você e seus pais, e gosto de todos porque sempre me respeitaram e me deixaram em paz. Então pode falar”.
E com estas palavras Teté procurou encorajar o ainda assustado Tiquinho. Até que este arranjou forças e começou a falar baixinho, todo envergonhado, de cabeça encurvada:
“Sabe o que é Teté, é que eu tô com um pensamento ruim que não me sai da cabeça. Vendo essa chuva toda cair, esse mundo lá fora parecendo que tá se acabando, de repente me veio um negócio ruim, um pensamento danado de medonho sobre minha família, como se uma coisa quisesse me dizer que aconteceu alguma coisa pra lá de estranha ou com meu pai ou com minha mãe. Mas o pior Teté, o pior...”.
E começou a chorar. O maluquinho acalmou-o e pediu que continuasse assim mesmo, sem pressa. E Tiquinho prosseguiu, ainda se derramando em lagrimas:
“O pior é que minha mãe vive muito doente, num morre num morre que somente Deus para saber seu destino. Ela tem uns problemas nas pernas, até atacando o corpo todo de vez em quando. E quando ataca tudo é uma aflição que não tem mais tamanho. Quando eu saí de casa pra vim pra cá ela tava assim nesse estado, toda cheia de dor que não agüentava mais, derreada na cama, com uns olhos de despedida que saí logo de lá pra não chorar. E depois que começou essa tempestade sem fim, valente demais, então ela deve ter ficado sofrendo ainda mais, com esses relâmpagos, trovões e vento de partir ferro, porque dizem que o tempo ruim assim desse jeito deixa do mesmo jeito a pessoa que é fraca, tá doente, como é o caso de minha mãe. É por isso que me veio uma coisa ruim, como se fosse um aviso dizendo que aconteceu alguma desgraça lá em casa. E pra piorar vi um vulto lá fora, uma visagem passando rapidamente e olhando e sorrindo pra mim, e tenho certeza que era minha mãe que veio se despedir...”.
E já não suportava falar, novamente tomado por um choro de fazer dó em qualquer um. E quem duvidasse dos sentimentos de Teté estaria completamente enganado, pois seu coração só faltava pular do peito, uma aflição profunda lhe tomava dos pés à cabeça, também chorava, um choro de lágrima e de grito por dentro.
Sem dizer uma só palavra no momento, apenas abraçou o menino e assim ficou um molhando o outro de lágrima. Até que se afastou um pouco, respirou fundo, procurou se refazer daquele estado de tensão, e disse:
“Deus está protegendo sua família, amiguinho. Não há de ser nada grave. Na aflição até se esqueceu de me pedir pra ir até lá, mas já sei que era isso que queria fazer. Eu sei muita coisa menino, eu sei muita coisa. Mas não se preocupe não que vou lá agorinha mesmo. Se eu quiser vou até voando pra chegar mais ligeiro. Inté, inté mais ver, que Teté já vai correr...”.
E saiu sem se despedir de mais ninguém. Quando os meninos o procuraram ele já estava além do portão, além da escola, na missão que sabia tão impossível. E sabia dessa impossibilidade porque o seu sexto sentido já havia lhe alertado sobre o acontecido. Já sabia de tudo, já sabia da morte, já sabia da dor e do desespero. E por isso mesmo sabia que Tiquinho viria lhe falar sobre isso, porém sem ter certeza de nada. Só não sabia o estágio de completa alucinação em que estava o pai dele, o agora viúvo.
Conhecia realmente a família, gostava de passar por ali e cumprimentar com um bom dia ou uma boa tarde. Povo simples, humilde, mas muito educado, zeloso do respeito ao próximo. E bastava que o povo de uma casa não mexesse com ele, não jogasse pedra nem ficasse dizendo bobagens, que ele logo se apegava, ficava amigo, mesmo sem jamais ter entrado porta adentro.
Por isso mesmo conhecia cada curva de caminho, cada pedra de rua, cada buraco no chão, que existia para chegar até lá. Com a visão da casa na mente, se apressava ainda mais porque bastava entrar numa ruazinha e chegar até lá. Mas assim que virou a esquina tomou um susto tão grande como jamais tinha acontecido em sua vida. E olhe que doido quando toma susto foi porque a coisa foi braba mesmo.
No susto, no espanto, sem querer acreditar no que via adiante, até bateu na própria cabeça pra ver se estava mesmo normal. Tirou as águas dos olhos, abriu bem os olhos de gato, e a cada clarão que as luzes lá de cima faziam embaixo via o pai de Tiquinho em pé, no meio da noite pavorosa, com a mulher morta estendida nos braços, erguendo-a o quanto podia, como uma desesperada oferenda aos deuses do impossível.

                                                     continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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