SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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domingo, 17 de julho de 2011

TEMPESTADE - 69 (Conto)

TEMPESTADE – 69

                          Rangel Alves da Costa*


Noutro canto da cidade, o pai de Tiquinho despertou dos instantes de entorpecimento com o rosto colado na face da esposa morta. Havia como que adormecido ao lado dela. Mazé, a ainda tão jovem Mazé, não havia conseguido vencer a luta contra a doença misteriosa, que ora atacava as pernas e ora o corpo todo, e morreu em plena tempestade, na ausência do filho, para o total desespero do marido.
Tiquinho, filho único, já sabia demais do perigo de morrer que sua mãe vivia correndo a cada dia. Ela sempre tentava esconder a doença, suas dores terríveis, sua situação delicada demais. Mas o menino sabia tudo, entendia tudo, e para não entristecê-la ainda mais fingia que nem estava preocupado com o seu estado. Ademais, o seu pai já havia conversado muito sobre o caso, já havia dito que não tomasse por surpresa a qualquer momento ela os deixar completamente órfãos.
Mas como a enfermidade se prolongava tanto, piorando e melhorando seguidamente, o marido achou que sua fraqueza maior naquele dia era motivada pelo início da tempestade, a mudança no tempo e os seus atropelos. Com Tiquinho na escola, nem imaginava que ela não suportaria ver a chuva passar. Verdade é que se foi sem se poder se despedir do filho.
Agora o esposo desconsolado, sem saber o que fazer da vida, pranteava a querida falecida bem ao seu lado, no leito de morte, como se noutra situação estivesse ali para dormir normalmente, para o beijo e o abraço, para o encontro de corpos no amor verdadeiro. Mas continuava ali, deitado ao lado do corpo já frio, já totalmente sem cor, se houvesse uma vela no quarto para iluminá-lo.
De repente ele levantou de onde estava e sentou bem na ponta da cama, de costas para a falecida, baixando a cabeça e colocando as mãos sobre ela, ao modo dos desesperados, e começou a falar sozinho, para a noite, para a escuridão, para os fantasmas da vida e da morte, para a esposa querida:
“Chuva de Deus, chuva boa demai. Aqui tava tudo seco demai, esturricano, que chega o vento levava as areia pra bem longe. Era uma festa ver o vento dançano e a gente sofreno. Planta num dava não, num dava nada, nem pra bicho se criar dava. A gente que vive da terra só tem que sofrer e num poder fazer nada. Por causa da seca medonha nós nunca mai plantou nada. Desne muito que eu já tava com as semente tudo pronta pra semear, pra espalhar na cova certa. Ia plantar dois quilo de ferro, um de diamante e mais outro de ouro. Estrume eu num ia plantar não que dá pouco. Ia cuidar bem direitinho pra no São João a gente ter ouro assado pra comer e diamante pra vender. Esperei, esperei, mai agora que choveu amanhã mermo, logo cedinho nós vamo pra roça. Mazé nunca mai quis ir lá na roça catar panela nem papelão, mai amanhã vai mai eu. Num se esqueça não Mazé, leve um sabonete que é pra gente passar na terra e um lápis pra gente coivarar os toco e depois fazer fogo com muita água. Essa chuva caiu do céu na horinha certa. Agora que tudo tá pegano fogo por riba da terra, então vamo aproveitar cada pedacinho que ela tenha. Vou abrir umas duas cova pra plantar peixe e outra duas pra botar um navio. Nunca mai nós comemo navio, num foi Mazé? Quano for mais tarde e a terra ficar parida, barrigada e botar pra fora tudo que plantemo, entonce nós vai fazer um cemitero bem bonito ali. Um cemitero maior do que esse aqui que nós mora, bem grande e bem bonito, com trei janela e dois corredor, um muro bem alto e um cachorro trigueiro que é pra latir quando chegar gente no cemitero da gente. Vai ter mai de mil quarto o cemitero, mais só vamo dormir em dois, outros cinco a gente deixa pra Tiquinho criar uma boiada bem grande do que ele quiser. Deve ser bonito uma boiada de trem ou de vento. Eu sempre quis ter uma boiada de gente, de gente bem gorada e com ponta que chega a brilhar. Ia ferrar tudinho e depois soltar bem dentro da minha fazendona. Por falar em fazendona, Mazé, vi uma ontem e vou comprar, fica bem ali no outro lado da rua, bem dento do esgoto. Mai só vou fazer tudo isso depois que nosso fio nascer. Nós já temo Tiquinho, mai eu quero mais outro que é pa botar o nome dele de Deus. E a gente vai gostar tanto dele, mimar tanto o danadinho arreliento que vai ser só Deus pa cá e Deus pa lá...”.
Depois caiu pelo chão e chorou desesperadamente, numa aflição de cortar coração, num gesto que parecia beirar a loucura. E ficou uns cinco minutos aos gritos, soluçando, chamando o nome da esposa morta, batendo com violência no chão. Em seguida, não se sabe o que lhe motivava para fazer esse gesto, mas se voltou para a cama, foi até lá, segurou a falecida nos dois braços e saiu com ela pela casa. Adiante, abriu a porta e saiu com ela nos braços pra debaixo da tempestade.
Na escola, já tendo começado a sentir coisas estranhas, pensamentos ruins que lhe chegavam à mente, o filho Tiquinho temia que tudo aquilo fosse um aviso que algo muito ruim pudesse ter acontecido com seus pais diante daquela chuva. Tinha vontade de comentar sobre isso com os amigos, porém voltava sempre atrás quando tinham que resolver tantos outros problemas ali mesmo.
Contudo, estava dentro da sala quando sentiu um calafrio diferente, um vento arrepiante que lhe chegou pelas costas. Ventania dentro da sala não podia ser, era impossível, e por isso mesmo se encaminhou para a porta e viu um vulto passando apressadamente adiante. Atônito, sem quase poder se mexer ou falar qualquer coisa, percebeu apenas quando o vulto virou o rosto e nele reconheceu sua mãe. Estava sorrindo. Sorrindo, um sorriso  triste, e dando adeus.

                                                        continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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