SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 10 de julho de 2011

AQUI E AÍ TAMBÉM (Crônica)

AQUI E AÍ TAMBÉM

                             Rangel Alves da Costa*


Aqui o mundo já acabou e parece que ninguém percebeu, mas sei que as pessoas sentem alguma coisa sobre o fato porque sabem que não são mais humanas, perderam os sentimentos, apenas vagam para se iludirem com uma existência que não existe mais como deveria.
Ouvi notícias que por aí tudo acabou também. Não significa que tudo de repente deixou de existir. Não, pois contraditoriamente tudo continua existindo precisamente para mostrar que por mais que as pessoas se achem importantes mais desconhecem a importância dos outros, pois praticamente não existe próximo, e se há alguém nessa qualidade logo tende a ser inimigo, desafeto, um ser abominável.
Aqui o individualismo tomou conta de tudo. Os fantasmas se acham importantes demais e saem pisando nas sombras de todo mundo, não importando se familiar ou pessoa honesta e honrada. Na verdade, a ideia é de que ninguém vale nada, a não ser quando serve para ser usado ao prazer das conveniências usurpadoras. Depois disso, depois que tiram do outro tudo que desejam, fazem de conta que uma sombra ruim passa ao lado.
Por aí creio que não é muito diferente, pois gente assim dá em todo lugar, se espalha feito erva daninha e com a rapidez de doença ruim. Aí já era de se esperar mais um pouco desse desprezo de uns perante os outros por causa da grandeza do lugar, do número de gente e do campo propício para fazer de conta que o outro só presta se for para servir. Mas pelo que sei isso virou febre, cultura arraigada no povo, um jeito próprio de ser que não admite de jeito nenhum a valorização e o compartilhamento com o próximo.
Aqui demorou um pouco para ser assim. Antigamente as pessoas ainda respeitavam os vizinhos, tinham o prazer de alguns instantes de prosa, de uma conversinha amigueira pelas calçadas. Não era de se estranhar os transeuntes se cumprimentarem, os mais próximos perguntar como estavam os familiares, a saúde, o emprego, a vida enfim. Não se tratavam como desconhecidos, como os inimigos que foram se tornando ao longo do tempo.
Duvido que por aí haja mais espaço para cordialidades entre vizinhos, para o cumprimento, uma boa tarde ou boa noite. E duvido muito mais que as pessoas não andem pelas ruas como se fosse entre fileiras de inimigos, com caras raivosas, olhares ameaçadores, agredindo qualquer um que displicentemente passe no seu caminho. Ouvi mesmo dizer que até dentro de casa as pessoas não se falam, pais e mães são ocupados demais, filhos têm coisas muito mais importantes a fazer, ninguém senta à mesa para almoçar ou jantar, só falta mesmo uns esquecerem os nomes dos outros.
Por aqui, desde muito tempo que a sem-vergonhice começou a imperar entre os mais jovens. Quando ainda existiam, quando ainda não haviam tido a mesma sina dos habitantes de Sodoma e Gomorra, dizem que ninguém falava mais em amor porque não sabia mais o que era nem o seu significado. Contentavam-se em sentir algum desejo no outro e daí em diante era a entrega absoluta, até mesmo sem conhecer a pessoa nem o seu nome, pelo simples prazer de curtir a vida e nem lembrar que haveria dia seguinte. Para a maioria, realmente nem existiu mais dia nenhum, pois a cegueira do corpo fez com que cegassem também do espírito.
Soube que por aí isso tudo sempre foi muito normal. Então fica imaginando que toda essa miséria humana que há hoje, com a imoralidade alarmante, as condutas desonrosas gritantes e as pessoas perdidas numa selva de cruel bestialidade, teria mesmo que acontecer. Tudo seria o resultado do desrespeito aos princípios familiares, aos norteamentos éticos pautando a conduta de cada um, aos bons caminhos que poucos aprenderam a seguir. E deu no que deu. Esse mundo conflitante, de fantasmas arrogantes e dizendo que o sabor da vida é a perdição.
Se eu disser uma coisa você nem vai acreditar. Mas vivo permanentemente escondido, trancado num enclausuramento de sombra e de vela porque os fantasmas que vivem lá fora não me deixam sair. Sabem que sei fazer tudo que eles não sabem mais, que é pensar, pensar e pensar. Pensar e dizer o que penso; bem alto, gritando e dizendo o que penso. E ouvir minha voz seria tormento demais para quem só sabe ouvir os sons delirantes das noites, das baladas que ensinam os corpos a se comportar nos caminhos da morte.
Talvez aí seja assim também. Mas aqui não há como duvidar. Poucos vivos no meio de tantos fantasmas, e eles querem apenas que deixemos os seus restos em paz, para fazer o que gostam, e sempre. Fim dos tempos, fim da vida, enfim.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com     

Nenhum comentário: