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domingo, 3 de julho de 2011

TEMPESTADE - 55 (Conto)

TEMPESTADE – 55

                          Rangel Alves da Costa*


Depois que fizeram com que o enfermo seminarista tomasse mais de meio copo de cachaça das mais valentes, sem jamais ter colocado uma gota sequer de bebida alcoólica na boca, as mulheres o estenderam na posição de antes. Qualquer posição sempre dolorosa.
Em seguida dividiram entre si o restante do líquido da garrafa, brindando à saúde tão almejada no amigo. Viravam o copo passando a língua pelos beiços, saboreando com prazer cada gotinha, como se fossem velhas cachaceiras, contumazes farristas de pé de balcão, de garrafa escondida no canto da cozinha. Só faltava ali a batucada e o remelexo. 
Passados os instantes da queimação com a bebida entrando na boca e descendo até o organismo, com os espasmos característicos e a repugnância pelo amargor fétido da aguardente, o corpo do jovem se mostrava ainda amolecido, suando frio, estremecendo de vez em quando.
Mas não durou muito e começou a mostrar outras reações, agora já em consequencia da absorção da bebida. Estava muito escurecido no ambiente, apenas com as chamas das velas dando ares às feições, mas se estivesse mais claro todas veriam que o sangue parecia ter retornado à pele, a pulsação havia aumentado, a face estava num tom mais avermelhado, o corpo suava diferente, mais quente e com um suor cheirando à bebida, ao álcool forte da aguardente.
O suor, parecendo que havia aberto as comportas da pele, surgia tão abundante e exalava um cheiro tão forte de álcool que as mulheres passaram a temer a proximidade da chama da vela. Quanto mais passavam panos pelo rosto e pelo peito do rapaz mais ele se abria em suor, com a pele queimando, avermelhando ainda mais, parecendo que o corpo em brasa estava derretendo.
Não demorou muito e o seminarista começou a balançar a cabeça e a dizer palavras desconexas: “Caderno caído. Cuidado caderno caiu, ninguém pode achar. Caderno precisa ser destruído. caderno caído, mulher caída também, desmaiada. Leu caderno e pode morrer. Desmaiada, caderno caído...”.
“Mas o que o pobrezinho fala tanto, meu Deus do céu? Se a gente pudesse adivinhar o que ele diz tanto...”. Filó falava quando foi entrecortada por Socorro: “Mas só pode ser do bendito caderninho que foi achado debaixo da cama e que foi levado daqui, de cima do culote de Minervina e por quem a gente imagina bem quem possa ter sido...”.
Minervina achou interessante fazer uma observação: “Vocês não perceberam, mas ele não tá dizendo coisa com coisa não, conversa travariada não, mas que a gente pode concluir bem o que seja, ao menos chegar perto. Pra mim ele tá dizendo que tem uma mulher caída por cima do caderno...”.
E quase num grito Filó acrescentou: “Se tem coisa de mulher então é sobre a danada da Antonieta que ele tá falando. E se ele tá falando em caderno então é mais ainda sobre ela, quem bem pode ter sido quem pegou o caderno escondido. O problema é saber esse negócio de mulher caída...”.
“Não só caída como desmaiada. Então aconteceu alguma coisa com Antonieta que ela caiu com o caderno. E caiu e está desmaiada. Mas só vamos tirar essa história a limpo quando a gente encontrar a danada, que deve tá aprontando alguma lá na frente. Vocês acham que devemos abandonar o pobrezinho aqui desse jeito e sair procurando agora mesmo aquela desarvorada?”, perguntou Minervina.
Rosinha então opiniou: “Mas não precisa todo mundo sair daqui de uma vez só não. Três vão caçar adonde a outra tá escondida ou se meteu e duas fica aqui cuidando dele. E olhem pra ele, o coitadinho, agora parecendo biqueira de alambique, agora escorrendo pela pele muito mais do que a cangibrina que teve de entornar. E pelo jeito a qualquer momento ele vai abrir os olhinhos. Então eu acho melhor que eu e Custódia fiquemo aqui enquanto vocês vão atrás daquela imprestável”.
Acharam excelente a proposta feita por Rosinha. Então, duas ficariam cuidando do adoentado e outras três seguiriam em busca do tesouro perdido, mas não que houvesse alguma joia que pudesse ser encontrada, mas pela mulher perdida, verdadeiro poço e tesouro de falsidade, que era Antonieta.
Antes de saírem, contudo, ouviram mais uma vez a voz fraquinha do seminarista, num murmurejar: “Rasgue o caderno, destrua o caderno, jogue tudo fora. A mesma dor da outra será a dor de todas, de todos e um sofrimento ainda mais espalhado. Encontre o caderno e destrua, no fogo, no fogo mais, quente, que é para o pó das cinzas ser levado pelas águas e as águas deixarem de cair assim...”.
O espanto foi geral. Se instantes atrás ele dizia coisa com coisa, com palavras que mal davam para serem ouvidas e muito menos entendidas, agora havia se expressado como alguém em plena consciência, porém afirmando uma coisa misteriosa demais para ser entendida.
O pior é que Socorro percebeu que ele falou tudo isso sem abrir a boca um instante sequer, tudo acontecendo como se as palavras saíssem da boca estando ela fechada. Se as outras perceberam esse fato ninguém comentou nada, mas a verdade é que depois disso todas ficaram se olhando entre si, assustadas, medrosas, com medo de até sair dali.
Por fim, as três se encaminharam para a porta da sacristia, que continuava fechada por dentro, como forma de não permitir o retorno de Antonieta. Pé ante pé, numa escuridão de pouco enxergar adiante, já um tanto tomadas pela cachaça que experimentaram com valentia, mas que agora já as tornava mais vulneráveis a tudo que encontrassem pela frente, às pontas de bancos, ao que estivesse no meio do caminho.
E foi por isso que Filó escorregou e caiu bem perto, quase em cima, onde Antonieta continuava desacordada.

                                                       continua...





Poeta e cronista
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