SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quinta-feira, 21 de julho de 2011

TEMPESTADE - 73 (Conto)

TEMPESTADE – 73

                          Rangel Alves da Costa*


Quando ouviu Teté dizer que ali se tratava de uma morta, o velho Timbé, mesmo com toda a idade e experiência de vida, já tendo visto na vida coisa que qualquer um duvidava, ainda assim ficou apalermado, embasbacado, sentindo um frio pelas pernas, uma aperreação danada.
Nesse estado, nem teve como perguntar quem era aquele outro que também tinha entrado porta adentro e que mais parecia uma assombração do outro mundo. Uma mulher morta e uma assombração, só faltava essa debaixo daquele negrume de tempestade. Era coisa demais numa chuvarada só.
Como a sala estava muito escura e fazia muito barulho por causa do tempo ruim lá fora, e tanto De Lourdes como Manuela quase não enxergaram direito quem havia chegado junto e trazido por Teté, se levantaram e foram até mais perto para saber o que estava ocorrendo. E quando lhes foi dito que se tratava de uma morta, colocada ali no sofá, e o seu ressentido esposo, começou um deus-nos-acuda.
De Lourdes, que estava de costas para o sofá, desmaiou por cima da defunta e ficou posicionada do mesmo jeito, toda estirada que mais parecia uma coisa estocada por cima da outra. Já Manuela desembestou em direção à cozinha, gritando por Sinhá Culó que quase passa por cima da idosa e foi diretamente se bater na porta que dava para o quintal e caiu estatelada no chão.
A velha senhora logo se encheu de espanto e, temendo que tivesse acontecido alguma coisa mais cabulosa lá pela sala, ao invés de tentar socorrer a destrambelhada caída adiante, juntou forças nas pernas fracas demais, cheias de reumatismos e outras dores, e foi se dirigindo ao local para saber o que estava acontecendo. Mas antes de botar o pé pra fora da porta da cozinha ouviu a voz aflita do marido:
“Corra aqui Culó, corra aqui que num enteno mai nada, num sei o que fazer adespoi dessa notiça. Traga uma caneca dágua açucarada, ligero. Traga duas, traga duas, uma pa eu tamem, ligero...”. Era o velho Timbé gritando pela esposa, enquanto se encaminhava apressado para ajudar Teté tirar a desmaiada de cima da falecida.
Quando Sinhá Culó viu o filho e o marido com De Lourdes nos braços, derrubou a caneca de água açucarada, colocou a mão sobre o peito e começou a se desesperar:
“Meu Deus do céu, minha fia morreu. Pru que meu Deus, levar ela inda assim tom cedo, sem ter arrumado um marido, sem ter vivido mai tempo, sem fazer nada? O que será de mim, meu Deus, agora que mia fiinha morreu? Que me levasse, que me fizesse morrer agora, mas pru que levar logo minha fiinha? Quero morrer, quero morrer, quero morrer, e que a morte venha sobre mim e traga de vorta minha fiinha. Quero morrer, quero morrer, quero morrer...”.
E tudo isso era dito na maior altura, no maior desespero do mundo, como se toda a vida estivesse se acabando porque achava que a solteirona havia morrido. Não suportando mais ouvir tanto agouro, Teté gritou ainda mais forte:
“Quer parar com tanta coisa ruim, mãe? Se alguém morreu por aqui foi outra pessoa e não De Lourdes. E quem já viu galo velho morrer assim de véspera? Vamos todo mundo lá pra cozinha que foi explicar tudo direitinho”. E se voltando para o viúvo todo quieto num canto, disse: “Você espere aí. Fique aí velando sua mulher que eu volto já”.
Já na cozinha, encontrando Manuela já querendo se reanimar, tomou a desmaiada sozinho nos braços e disse aos pais que esperassem um instantinho que ia fazer a irmã voltar a si em dois tempos. Abriu a porta da cozinha e saiu com ela nos braços. Lá fora, não demorou nem dois minutos de chuva grossa caindo por cima do corpo inteiro, e a solteirona abriu os olhos assustada, querendo pular.
No passo seguinte e já estavam de retorno, encontrando todo mundo tomando água açucarada e comentando um monte de coisa que não sabia. De Lourdes, feito um pinto molhado, se tremia toda com os braços cruzados e o queixo tremendo de frio. Teté mandou esquentar um café pra ela e depois pediu que todos ficassem em silêncio para explicar direitinho o que tinha ocorrido.
A cada passo do relato e os semblantes dos quatro se enchiam de tristeza e comoção. De Lourdes e Manuela choravam que chegavam a soluçar. O velho Timbé, andando sempre de um lado a outro, com as mãos pra trás, certamente trazia mil coisas ao seu pensamento. Sinhá Culó se agarrou num rosário e silenciosamente fazia preces e mais preces.
Ao terminar o relato, Teté perguntou ao pai se tinha agido mal em ter trazido a defunta até ali. E o velho pai, ainda caminhando de um lado a outro, respondeu: “Meu filho, o que é a nossa vida senão enterrar os mortos?”. “Não entendi direito, papai, o senhor poderia explicar melhor o que quis dizer?”, perguntou a solteirona, num momento de respiração:
“Eu quis dizer que diante de uma situação dessa, numa tristeza danada como disse Teté, não haveria como o coitado do marido dá conta de si mermo e da querida defunta. A morte em si já é um bicho feioso demai, coisa de se querer ver pra nunca ter. Imagine vosmicês um marido ver a esposa morrer, adebaixo de um tempo desse, e não poder fazer nada. Numa hora dessa o homem fica que nem sabe one botar os pé, o que fazer, o que pensar. E pelo que foi dito, o coitado já tava em tempo de endoidar, com a mulher lá fora fazeno não se sabe o que. Por isso mermo vosmicês pode achar tudo estranho, ficar com medo e tudo mai, porém Teté fez o certo, troxe a morta pa donde pudesse ser velada como cristã e o marido pa ser confortado. Agora vamo botar ela nouto lugar, acender umas vela e rezar pela alma da coitada, até que esse tempo ruim vá simbora e o sol apareça pra gente enterrar ela com todo respeito que um ser humano merece”.
Depois das palavras do velho Timbé, todas tomaram consciência do acerto do maluquinho. Aliás, este havia saído por um instante pra chamar o marido da morta pra uma xícara de café na cozinha, onde estava mais iluminada. E ao retornar trazendo o outro, já tomado banho de chuva e vestido numa roupa de Teté, um novo espanto se apossou das faces de De Lourdes e Manuela.

                                                        continua...





Poeta e cronista
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