SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 25 de julho de 2011

TEMPESTADE - 77 (Conto)

TEMPESTADE – 77

                          Rangel Alves da Costa*


O velório de Mazé havia se transformado num palco silencioso de guerra entre a solteirona De Lourdes e a ex-casada Manuela. Continuavam sentadas pertinho uma da outra, mas essa proximidade servia apenas para o fustigamento.
As duas não perceberam, mas passaram a usar a mesma estratégia para, a um só tempo, afastar o viúvo da outra e resguardá-lo para si. Assim, De Lourdes cochichava no ouvido de Manuela e dizia que nunca tinha visto um homem tão feio igual aquele. Feio demais, esquisito, ridículo. E esta soltava que além de feio deveria ser bicho do mato, rude e ignorante que só. Um brutamonte no meio da civilização.
Mas não parava por aí não. A solteirona, tentando a todo custo afastar os olhares da amiga para o homem, falava baixinho que já ouviu dizer que ele deixava a família passando fome, batia na mulher e até acorrentava ela de vez em quando. Com a mesma intenção, Manuela chegou a dizer que as más línguas comentavam que ele puxava arma pra falecida, a fazia andar de joelhos e passar dias e mais dias a pão e água. E pouca água, e menos pão ainda.
Mas como se vê, tudo mentira, tudo a mais deslavada mentira, com á única e exclusiva intenção de ver a outra criando medo do homem e assim deixasse o caminho aberto para o bote futuro. Tanto era assim que o coração de cada uma sempre batia mais forte ao avistar o semblante do viúvo na meia luz, e diziam intimamente: mas que homem mais lindo, que pedaço de viúvo, quem dera eu poder cuidar dele daqui em diante!
Sinhá Culó não gostava de ver as duas naquele falatório baixinho enquanto rezava para a alma da defunta ali estirada. Não era só feio como era pecado não ficar constantemente jogando os olhos de piedade para o corpo velado. Lágrimas caíam muito bem nessa hora, orações e preces mais ainda, mas jamais fazer o que aquelas faziam, numa fofocagem que parecia sem fim.
E chegou ao ponto que o velho Timbé teve que pedir silêncio e exigiu que acompanhassem Sinhá Culó na reza de encomendação de alma:

“Tu anseias, eu bem sei, por salvação,
 tens desejo de banir a escuridão
 abre, pois de par em par teu coração
 e deixa a luz do céu   entrar
 Deixa a luz do céu entrar
 deixa a luz do céu entrar
 Deixa a luz do céu entrar
 deixa a luz do céu entrar
 abre bem as portas do teu coração
 e deixa a luz do céu entrar
 Cristo a luz do céu, em ti quer habitar
 para as trevas do pecado dissipar,
 teu caminho e coração iluminar
 e deixa a luz do céu entrar 
 Que alegria andar ao brilho dessa luz
 vida eterna e paz no coração produz
 Aceita agora o salvador Jesus
 e deixa a luz do céu entrar”.

Pela ordem recebida do velho Timbé, as duas tiveram de acompanhar Sinhá Culó de qualquer jeito. E entoariam outras preces e orações se não ouvissem o barulho na porta. Só podia ser Tetê, todos imediatamente pensaram. O velho dono da casa levantou apressado e foi abri-la imediatamente. E de repente as duas crianças já estavam entrando, cada uma correndo para braços diferentes.
O pai de Tiquinho quase dá um passamento quando enxergou a figura do filho querido vindo em sua direção, silencioso e de braços abertos. O homem não encontrou forças para levantar e abraçou o menino ali mesmo sentado, num aperto misturado às lágrimas, sem tempo para nenhuma palavra. Somente depois ele pôde murmurar: “Mamãe foi morar com Deus, meu filho. Vá até lá e de um abraço de despedida nela”.
Nesse momento, com o rosto coberto de lágrimas, Marilda largou os braços da mãe e foi pra perto do amigo, acompanhando-o no último abraço à falecida. Em seguida, com todos chorando pelos olhos e o coração, viram o menino ficar de joelhos ao lado da mãe e depois levantar e falar, pausadamente, com a voz entrecortada pelos soluços:
“Mãinha, quando eu saí de casa a senhora estava deitada, agora retorno e encontro a senhora novamente deitada. Só que há uma diferença grande entre estar deitada para esperar o filho voltar da escola e o estar deitada porque morreu, porque não pode mais levantar, porque não verá jamais o filho retornar. Mas voltei, Mãinha, e estou aqui a seu lado me despedindo pra dizer que a partir de agora eu, Tiquinho, com a fé e a confiança que tenho em Deus, ergo o seu corpo da morte, levanto o seu corpo da morte e convido para caminhar ao meu lado por toda a vida, por todos os caminhos que eu caminhar, por onde eu tiver que seguir. Digo isso porque sei que sempre estará ao meu lado, e como bom filho que sempre serei, jamais soltarei a tua mão, jamais esquecerei a sua lição, jamais farei da vida algo vão. E pela vida eternamente caminharei ao teu lado, segurando sempre sua mão, pois terei sempre a senhora erguida no meu coração. Vá com Deus Mãinha, e que o bom Senhor tenha sempre presente a senhora ao seu lado no paraíso”.
Todos ficaram encantados com as palavras de Tiquinho, e tanto que não cabiam mais em si de alegria pelo que ouviram e também de tristeza pelo momento e a circunstância em que foi dito.  O pai, que quase todo tempo ficava em silêncio, choroso, de cabeça baixa, enfim abriu a boca e disse: “Sua mãe deve estar muito orgulhosa de você, meu filho. Não se preocupe não que não vai faltar nada pra você, eu garanto”.
E num gesto impensado para o momento, De Lourdes deixou sair essa: “Quem sabe você não arranja logo outra mulher?”. Manuela tremeu de raiva, e sua mãe falou em tom de reprimenda: “De Lourdes, De Lourdes...”.

                                                     continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

  

Nenhum comentário: