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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 5 de julho de 2011

AS DEPENDÊNCIAS DA MINHA CASA (Crônica)

AS DEPENDÊNCIAS DA MINHA CASA

                        Rangel Alves da Costa*


Casa levantada acima da terra, seja pobre ou rica, possui suas divisões. Ali a cozinha, acolá o banheiro, mais adiante a sala, o quarto, a varanda, e assim por diante. A estas divisões dão o nome de dependências.
Neste sentido, dependências seriam os anexos de uma edificação, de uma casa; cada compartimento ou divisões de uma moradia; cômodos, tais como quartos, aposentos, banheiros, garagens. Mas não são apenas os prédios que possuem compartimentos.
Não sou propriamente um prédio, um edifício, mas não deixo de ser uma casa, uma moradia onde me guardo em mim mesmo para sobreviver. Na verdade, sou uma edificação, e como construção corporal e espiritual também possuo dependências internas e externas.
Internamente, me divido e me desfaço em muitos e quase nada. Sou muito grande e tudo, e quase nada e nada. Muitas vezes me perco dentro de mim mesmo, me procuro e só vou encontrar quando esqueço que existo. Há um solar, outras vezes um labirinto; uma imensidão clara e arejada, outras vezes escuridão sufocante.
Por isso mesmo não é sempre fácil me deslocar dentro de mim, encontrar os caminhos certos. Às vezes me bato toda hora, fico dizendo a mim mesmo que procure outro caminho para andar, que não venha sempre saindo do pensamento diretamente para a boca ou que passe antes na consciência antes que se torne palavra.
Mas é difícil demais viver nessa casa que às vezes é tão própria e outras inteiramente dos outros, como se eu vivesse como inquilino de algum outro cruel coração ou de favor de quem acha que sou um pobre coitado. Não há cão sem dono, mas apenas o dono sem o cão, não diz o ditado. Mas deveria dizer.
Qualquer dia dou razão ao medo e tomo posse de mim mesmo de uma vez por todas e depois alego usucapião. Justifico boa fé e ânimo de dono de mim mesmo. Ora, são quarenta e oitos anos sem sair do mesmo lugar. Se alguém se opuser a essa pretensão simplesmente digo que pode me levar, pode tomar posse de mim como se fosse dona. Ao menos assim saberei que alguém possui pretensões com relação a mim, alguém me quer.
Mesmo assim, cercado de tantas incertezas sobre quem tem direito à minha pessoa, que suponho seja a casa mais humilde e mais aconchegante que possa existir, pois sempre aberta aos que procuram uma boa amizade, um carinho, um doce afeto, tenho plena consciência que nenhum projetista poderia dividi-la tão perfeitamente como ela está.
O projetista certamente não teria nenhuma dificuldade em planejar uma casa com apenas três vãos, três dependências. O problema é que tais compartimentos nada mais são do que a mente, o coração e o resto do corpo. Haveria espaço para outras construções na planta física, mas a conveniência me faz assim tão exato: a mente, o coração e o resto do corpo. Só isso.
A mente incansável, nunca se aquieta, nunca descansa, jamais se contenta com o apenas pensado: quer tornar ação o pensamento. E pega o lápis, o papel, traz a fotografia, o beijo, a saudade, escreve um poema, ama demais e depois rasga e joga fora. A casa é sempre entupida de coisas jogadas fora.
Pensa nela o tempo todo, faz planos, viaja, delira, entristece, quer casar, mas sabe que não tem como, não tem dinheiro, não tem emprego, não tem herança pra receber, não tem posses, não tem nada. Apenas a casa que pode ser esbulhada a qualquer instante. Aquele José do poema de Drummond talvez more numa casa igualzinha. E agora José?
O coração fica quietinho no seu canto, com medo do que a mente imagine fazer para lhe dar trabalho. E quando menos espera tem que sofrer, tem que chorar, tem que ficar dolorido, tem que padecer. Tem vontade de fechar a porta, e fecha. Aliás, nunca mais abriu desde a última vez que fechou, e já faz muito tempo. Entrou e se trancou quando sentiu na pele o quanto era difícil amar.
Já o resto do corpo precisa de uma reforma. As paredes estão enfraquecendo, os olhos precisam de qualquer brilho, será preciso mudar a cor da janela, pois o sorriso está envelhecido demais. E quem dera um jardim e uma tarde, uma tarde e uma cadeira de balanço. Quem dera...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
  

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