Rangel Alves da Costa*
Acordei cedo demais, ou na noite escura
demais. Ainda no nascer da madrugada e eu já estava fora da rede. O palco da
banda de forró parecia no meu quintal. Toda vez que há show na área dos
mercados todo o som parece se deslocar para cá. E quanto mais ventania mais os
ecos invadem a casa inteira.
Mas não acordei cedo demais por causa do
barulho da festança junina. Se o forró é bom, também deleitoso escutar. Mas quando
quero dormir, continuar na minha rede de toda noite, tanto faz que um trio
elétrico mostre toda sua potência à minha porta. Creio que eu repousaria
tranquilo até mesmo no meio do fuzuê.
Acostumei acordar muito antes de qualquer galo
e não tem jeito. Já dormi demais e tenho de aproveitar cada instante da vida,
desde a madrugada escura. No passado, há cerca de seis anos, estive por treze
dias em estado de coma induzida e talvez tenha dormido demais. Mas a
transformação do relógio do sono foi por outro motivo, ainda que relacionada
àquela enfermidade.
Assim que deixei a unidade intensiva fui
levado para um quarto no hospital. A todo instante chegava um enfermeiro,
quando não um médico, para os mais diversos procedimentos. Remédios,
verificação da pressão, inalação medicamentosa, uma série de cuidados. Como
tudo era controlado, com hora marcada, a noite inteira eu era despertado para
tomar medicação.
Quer dizer, fui forçado a despertar no meio
da noite e não ter mais sono. Recebi alta, deixei o hospital, me recuperei, mas
o acordar na madrugada resolveu me acompanhar até agora. Ainda hoje, assim que
abro os olhos, é como se avistasse uma enfermeira com um copinho plástico com
comprimidos e outro com um tanto de água.
Foi por isso que nunca mais dormi até cinco
ou seis da manhã. Quando durmo muito acordo às três, mas antes disso geralmente
já estou em pé. E após levantar sempre a mesma coisa: acender a vela, orar,
tomar banho, ferver água para o café forte e sem açúcar, depois me sentar
diante da máquina para escrever.
Mas nem sempre assim acontece. Quando acordo
e está chovendo – com chuva forte principalmente -, meus afazeres de sempre são
um pouco modificados. Gosto de sentir a chuva caindo, aprecio seu som em meio
ao silêncio, sinto prazer em mirar seus mistérios e imaginar seus segredos.
No quintal, em meio a biqueiras e debaixo dos
pingos, é como se uma vida nova caísse sobre mim, uma purificação da alma que
alegra o espírito. No meio da escuridão sem lua, envolvido pelas águas novas e
no silêncio murmurante, apenas viver a poesia do instante sem pensar além dos
doces e bons mistérios que nos acontecem.
Também no portão da frente há muito que
aproveitar. Afasto as cortinas e fico observando a chuva caindo e o que adiante
acontece. Nesta hora, de ruas desertas e vidas ainda adormecidas, o que
acontece sequer faz imaginar naquilo que se transformará logo mais, quando a
manhã chegar, as portas se abrirem e as pessoas tomarem seus caminhos.
Mas o que acontece? Apenas o singelo, o
sublime, o belo. O negrume do asfalto molhado, tomado de água que lentamente
escorre, também é avistado como um espelho levemente dourado pelas luzes dos
postes. E as luzes amareladas não conseguem esconder a feição dos pingos que
vão caindo. Então a chuva é avistada descendo até tocar no asfalto para
escorrer.
Talvez isto não tenha qualquer significação
para muitos. Até mesmo porque apenas chuva caindo no meio da noite, na
madrugada. Mas penso e sinto o contrário. Não só na noite ou na madrugada, mas
a qualquer instante, após a vida banhada resta-nos perfumá-la com as melhores
essências que possamos oferecê-la. E perfumada também será nossa existência,
pois vida nova, esperançosa, renascida.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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