SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 23 de junho de 2015

CHUVA NA MADRUGADA


Rangel Alves da Costa*


Acordei cedo demais, ou na noite escura demais. Ainda no nascer da madrugada e eu já estava fora da rede. O palco da banda de forró parecia no meu quintal. Toda vez que há show na área dos mercados todo o som parece se deslocar para cá. E quanto mais ventania mais os ecos invadem a casa inteira.
Mas não acordei cedo demais por causa do barulho da festança junina. Se o forró é bom, também deleitoso escutar. Mas quando quero dormir, continuar na minha rede de toda noite, tanto faz que um trio elétrico mostre toda sua potência à minha porta. Creio que eu repousaria tranquilo até mesmo no meio do fuzuê.
Acostumei acordar muito antes de qualquer galo e não tem jeito. Já dormi demais e tenho de aproveitar cada instante da vida, desde a madrugada escura. No passado, há cerca de seis anos, estive por treze dias em estado de coma induzida e talvez tenha dormido demais. Mas a transformação do relógio do sono foi por outro motivo, ainda que relacionada àquela enfermidade.
Assim que deixei a unidade intensiva fui levado para um quarto no hospital. A todo instante chegava um enfermeiro, quando não um médico, para os mais diversos procedimentos. Remédios, verificação da pressão, inalação medicamentosa, uma série de cuidados. Como tudo era controlado, com hora marcada, a noite inteira eu era despertado para tomar medicação.
Quer dizer, fui forçado a despertar no meio da noite e não ter mais sono. Recebi alta, deixei o hospital, me recuperei, mas o acordar na madrugada resolveu me acompanhar até agora. Ainda hoje, assim que abro os olhos, é como se avistasse uma enfermeira com um copinho plástico com comprimidos e outro com um tanto de água.
Foi por isso que nunca mais dormi até cinco ou seis da manhã. Quando durmo muito acordo às três, mas antes disso geralmente já estou em pé. E após levantar sempre a mesma coisa: acender a vela, orar, tomar banho, ferver água para o café forte e sem açúcar, depois me sentar diante da máquina para escrever.
Mas nem sempre assim acontece. Quando acordo e está chovendo – com chuva forte principalmente -, meus afazeres de sempre são um pouco modificados. Gosto de sentir a chuva caindo, aprecio seu som em meio ao silêncio, sinto prazer em mirar seus mistérios e imaginar seus segredos.
No quintal, em meio a biqueiras e debaixo dos pingos, é como se uma vida nova caísse sobre mim, uma purificação da alma que alegra o espírito. No meio da escuridão sem lua, envolvido pelas águas novas e no silêncio murmurante, apenas viver a poesia do instante sem pensar além dos doces e bons mistérios que nos acontecem.
Também no portão da frente há muito que aproveitar. Afasto as cortinas e fico observando a chuva caindo e o que adiante acontece. Nesta hora, de ruas desertas e vidas ainda adormecidas, o que acontece sequer faz imaginar naquilo que se transformará logo mais, quando a manhã chegar, as portas se abrirem e as pessoas tomarem seus caminhos.
Mas o que acontece? Apenas o singelo, o sublime, o belo. O negrume do asfalto molhado, tomado de água que lentamente escorre, também é avistado como um espelho levemente dourado pelas luzes dos postes. E as luzes amareladas não conseguem esconder a feição dos pingos que vão caindo. Então a chuva é avistada descendo até tocar no asfalto para escorrer.
Talvez isto não tenha qualquer significação para muitos. Até mesmo porque apenas chuva caindo no meio da noite, na madrugada. Mas penso e sinto o contrário. Não só na noite ou na madrugada, mas a qualquer instante, após a vida banhada resta-nos perfumá-la com as melhores essências que possamos oferecê-la. E perfumada também será nossa existência, pois vida nova, esperançosa, renascida.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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