Rangel Alves da Costa*
Para muitos que não entendem a razão, chega
mesmo a espantar o porquê de um sertanejo se revirar como pode, e sempre num
sacrifício descomunal, para manter duas ou três vaquinhas magricelas. E logo
dizem que muito menos custoso seria vendê-las a qualquer preço e ficar livre de
estar atrás de palma esturricada, catando resto de capim, se desdobrando para
continuar com aquilo que lhe dá tanto gasto e trabalho. Além do sofrimento da
seca, aquele padecimento sem fim.
Na verdade, somando o gasto e o trabalho, o
esforço e o sacrifício que a cria raquítica demanda estiagem após estiagem, o
resultado seria desalentador para qualquer outro que não o sertanejo,
principalmente aquele que conta nos dedos de uma só mão todo o seu rebanho.
Mesmo um justo valor que receba, ainda não cobriria sequer parte do que é gasto
na soma das estiagens. Mas por que o homem da terra insiste tanto no sacrifício
e não procura logo se desfazer da criação antes que a seca deixe tudo no couro
e no osso?
Como acontece com os animais, igualmente
acontece com a terra, com a pequena propriedade que mantém com tanto gosto. No
seu pedacinho de chão sua vida, ali o meio de sobrevivência, o sustento, tudo.
Muitas vezes não passa de três ou quatro tarefas, mas numa dimensão que se
afeiçoa a riqueza grande. Ora é naquele chão que finca a enxada para fazer
vingar, que crava estaca para chamar de curral, que tem seu bicho pastando e a
beleza da vida ante o olhar. E o orgulho e a satisfação nunca diminuem mesmo
quando tudo é transformado pelo cinzento da seca devastadora.
Pelas idas e vindas da desolação sertaneja,
chega um tempo que o humilde caboclo se vê quase despossuído de tudo. Na terra
rachada de sol não há como vingar nada, não há plantio nem colheita, o alimento
escasseia, a feiura da fome logo começa a amedrontar. E quando há filho pequeno
então tudo se torna num deus nos acuda. Num tempo assim, onde nem trabalho
existe para a garantia do pão, a única certeza que o homem tem é de continuar
pisando no que é seu. Mas não faltam as tentações para que venda tudo, suba num
pau de arara e vá sofrer redobrado noutro lugar.
Além dos pássaros agourentos e das aves
carnicentas, em época de seca o sertão é também tomado por uma perigosa espécie
de predador: o homem aproveitador da desgraça alheia, o insensível e desonesto
que se aproveita da penúria do povo para lhe tomar desde o seu chão ao que
ainda reste como criação. E são muitos assim, desde aqueles conterrâneos de
maiores posses aos forasteiros que por ali chegam no faro da desvalia. Sempre
esperam que a seca se prolongue para que o homem perca todas as forças e acabe
desistindo de tudo. Então será a hora de negociar a vida a preço vil.
A maioria dos sertanejos, contudo, não se
submete às armadilhas dos espertalhões. Simplesmente manda voltar da cancela
todo aquele que queira se aproveitar de sua frágil situação. O sofrimento é
terrível, o padecimento é grande, mas vai suportando na fé e no apego ao que
tem ao que ainda lhe resta. A verdade é que prefere sofrer vendo urubus e
carcarás devorando os restos da vaquinha que não suportou ficar de pé a ouvir o
mugido triste do bicho sendo levado na poeira da estrada.
Assim acontece com tudo o que o possui. Faz
parte da cultura matuta o apego a tudo que lhe chegue pelo esforço, pelo
sacrifício da luta. Até mesmo coisas simples acabam enraizadas no acervo
sentimental. Para uma ideia da afeição criada ao que faça parte de seu mundo,
basta saber que o sertanejo só puxa o pescoço de uma galinha de quintal ou faz
sangrar um bode ou um porco quando já não pode adquirir um naco de carne na
feira local. E não raro que muitos prefiram suportar um pouco mais a panela
vazia a se alimentar de qualquer bicho de seu quintal. E assim age não por
sovinice, por avareza, mas pelo amor enlaçado ao que tanto se acostuma como
significativo ao seu mundo.
Desse modo, a vaquinha entristecida e
magricela que mal suporta em pé, ao invés de ser um fardo será sempre vista com
afeto redobrado perante a situação. Não importa que o jegue já não tenha força
nem serventia para as durezas do sertão, pois debaixo do sombreado do juazeiro
ele continuará até que se finde pela idade. Que se mire no exemplo do velho
chapéu de couro ou do alforje de caçada: nunca se viu indumentária matuta sendo
desprezada ou jogada fora. O dono se vai e a história permanece.
Assim como todo o sertão sofre com os filhos
que deixam a terra em retirada, fugindo da seca e cujo destino não se conhece o
desfecho, do mesmo modo é o sofrimento do sertanejo ao ter de dar adeus com o olhar
lacrimoso à sua cria que já vai além da porteira. Por isso mesmo que tudo faz
para evitar essa separação. Age no supremo esforço, se entrega ao sacrifício,
mas procura manter ao seu lado aquilo que é parte de sua própria vida. O que
muitos imaginam ser apenas dor, nada mais é que sublime sacrifício.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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