Rangel Alves da Costa*
A minha terra é retrato na parede, é imagem
no pensamento, é visão seja onde eu estiver, é recordação, é saudade. Como o
exilado que sofre por estar ausente, como o viajante que não pensa noutra coisa
senão retornar, assim vivo eu no padecimento dos dias. Há, entre a tristeza e a
alegria, apenas uma estrada como separação, mas que precisa ser caminhada para
o reencontro com o sol maior e a lua mais bela, a desolação e a grandeza da
vida.
Não há angústia maior que viver com saudade
do berço de nascimento, do sertão amado. E logo me vem à memória “Saudade de
minha terra”, hino sertanejo de Belmonte e Goiá: “De que me adianta viver na
cidade se a felicidade não me acompanhar, adeus paulistinha do meu coração lá pro
meu sertão eu quero voltar, ver a
madrugada, quando a passarada fazendo alvorada começa a cantar, com satisfação
arreio o burrão cortando estradão saio a galopar. E vou escutando o gado
berrando, sabiá cantando no jequitibá...”.
Sei que o sertão está ficando diferente a
cada dia. A pujança sertaneja de outrora vem sendo diminuída de modo aviltante.
Além dos modismos que vão descaracterizando a vida sertaneja, relegando ao
esquecimento a cultura e as tradições, os vícios urbanos também se arvoraram do
direito de devorar a singeleza de um povo. Desde a música aos costumes, tudo
parece um lugar qualquer que não o sertão.
A bem dizer, do sertão em si só resta a ideia
de sertão criada pelo sulista, o conceito geográfico remetendo a aridez
permeada de cactáceas e períodos de grandes estiagens, e a história quando desencavada
por algum interessado pelo passado. Na maior parte, apenas isto. O sertanejo em
si está muito modernizado. Dificilmente se encontra uma moradia com candeeiro e
fogão de lenha. Também quase não se utiliza mais bicho de montaria, pois tudo
agora é no lombo da moto. O grito do aboio deu lugar à voz inteligível ao
celular.
Não há mais o sertão de vizinhanças, de
amigos conversando debaixo dos pés de paus sombreados, das cadeiras nas
calçadas aproveitando a aragem do tempo e a moldura enluarada. A autenticidade
do sertanejo foi sendo transformada num qualquer de qualquer lugar. Lógico que
o novo sempre tende a modificar a vida e as manifestações próprias de cada
povo, mas não de modo tão voraz e assustador. Somente a história para preservar
os resquícios do sertão de Lampião, do Conselheiro, do Padre Cícero, de Luiz
Gonzaga e tantos outros que o inscreveram nas páginas da eternidade.
Difícil dizer, mas, em muitos aspectos, a
terra sertaneja está totalmente irreconhecível. Nunca foi própria daquela
região a violência que não a justificada pela desfeita, a disseminação das
drogas, as perversidades que são cometidas nos quatro cantos. Ninguém tem mais
paz, sossego ou segurança. Ora, o sertão sequer é mais do sertanejo. Basta
observar quantos forasteiros se instalaram por lá e quantas famílias autênticas
ainda estão enraizadas naqueles quadrantes.
É triste ter um sertão que impiedosamente
padece pelas mãos da incúria, da violência, do desconhecido que chega e vai
transformando toda a feição do lugar. Pelas mãos dos forasteiros é que toda
vida sertaneja é destroçada. Sempre houve o problema das secas, da fome e sede
e sofrimento, das dificuldades de sobrevivência, mas o próprio sertanejo sempre
soube superar as dificuldades. Havia mata fechada, catingueira por todo lugar,
caça, fruta nativa, mata ciliar, riacho, tudo. Mas tudo isso acabou pelas mãos
forasteiras.
Tudo na vida é consequência do feito,
principalmente – e infelizmente - do malfeito. O simples ato de derrubar a mata
sertaneja sob a desculpa de plantar para colher, outra coisa não fez o
forasteiro que não devastar toda a vida da região. Sem mata não há passarinho,
não há ninho de passarinho, não há bicho do mato, não há caça, não há nada mais
que possa afastar a fome numa seca maior. Além do que o autêntico sertanejo
ficou sem o seu ganha pão no trabalho com a terra. Por consequência, o que se
tem hoje é uma legião de desempregados e desesperançados.
Mesmo não estando cortando suas veredas desde
o amanhecer, andando pelos seus caminhos como sempre faço assim que chego por
lá, tal situação acaba me causando um terrível sofrimento. Não posso admitir
que o meu sertão seja tratado dessa forma por seus próprios filhos, forasteiros
ou quem quer que seja. Ali a história maior, a incansável luta de um povo para
ser reconhecido e respeitado, uma terra de pífanos, aboios, vaquejadas, forró,
de uma fé e religiosidade indescritíveis. Há, pois, que se respeitar o sertão.
Certamente que a feição sertaneja jamais será
restituída no que fez brotar de melhor. Impossível voltar no tempo e não
permitir que as raízes que sustentavam um jeito tão próprio de ser e viver
sejam arrancadas. O enfrentamento agora é perante o futuro. Ou se preserva o
que ainda resta de história e cultura ou mais tarde nem mesmo os sertanejos
conhecerão vestígios de seu passado. E uma terra sem tradição tende a ser lugar
de nada e de ninguém. Ou um cemitério dos tempos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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