Rangel Alves da
Costa*
Aconteceu
no sertão. A maior guerra de todos os tempos, dado às armas usadas pelos
combatentes, aconteceu no sertão. E recebeu o nome de guerra dos cactos porque
travada entre mandacarus, xiquexiques, palmas, facheiros, cabeças-de-frade, e
também urtigas e cansanção. E teve muito mais planta espinhenta envolvida.
Tudo
começou por causa de uma seca terrível que se espalhava pelos quadrantes
sertanejos. Quando a estiagem desceu no raio de todos os sóis, a água do
barreiro virou lama, a planta se curvou desvalido, tudo acinzentou e definhou,
começou um deus nos acuda de fazer cortar coração.
Quem ainda
possuía pequeno criatório, ou mesmo dono de uma ou duas vaquinhas, logo se viu
numa situação indescritível. Enganava o choro da filharada com pedaço de pão ou
naco de qualquer coisa, mas era diferente com o bicho secando de fome e sede na
malhada. Não havia nada a fazer que pudesse enganá-lo, calar sua voz lamentosa.
Quando a
situação chega a esse ponto, só há uma saída para o sertanejo, mesmo assim se
puder dispor da saída. Outra coisa não se pensa em fazer a não ser lançar mão
das cactáceas sempre resistentes nas terras esturricadas. Por isso mesmo que
alguém já disse que os cactos são os únicos remédios que o agoniado pode lançar
mão naqueles momentos onde não há mais nenhuma planta em pé.
Com
efeito, todo o capim existente já havia sido devorado pelos animais ou secado
pelo sol. Não existia mais folhagem com seiva nem broto que enganasse qualquer
barriga. Não havia realmente nada para oferecer aos bichos, a não ser os cactos
que se espalhavam pelos pastos e escondidos. Era sempre assim, mas daquela vez
aconteceu diferente.
Assim que
perceberam que havia chegado sua vez de morrer para alimentar animal - e até
gente, certamente -, então os cactos começaram a buscar estratégias para se
defender. Tramaram, pensaram, esboçaram ações e reações, e chegaram à conclusão
que se não havia mesmo jeito a dar, então que os outros cactos fossem os
escolhidos para o golpe do facão afiado.
E, assim,
a causa maior da inenarrável contenda: cada cacto, lutando pela preservação da
vida, começou a tramar contra o outro, jogando a lâmina para o seu pescoço. Foi
por isso que a palma fingiu estar doente, seca e frágil demais, quando o
sertanejo lhe alcançou. Foi poupada, mas nem sem antes dizer que o xiquexique
estava gordinho e verdejante. E foi o fim do pobre coitado.
Tal
conversa se espalhou de tal forma e tão rapidamente que assim que um cacto
avistava um sertanejo de facão na mão logo apontava onde havia uma planta boa
para o corte. Fugindo da degola, colocava a outra com a cabeça no cesto. Sem
saber da safadeza, o sertanejo deixava a mentirosa pra trás e agia
impiedosamente com a inocente. Mas a situação ficou tão insuportável entre as plantas
que não demorou muito e a guerra foi declarada.
Era
espécie contra espécie, mandacarus contra xiquexiques e palmas, e estas contra
facheiros, cabeças-de-frade, urtigas e cansanção. Quem era espinhento, usava os
espinhos como arma mortal; quem era urticante, usava suas queimações como arma
letal. No calor da luta, no desenfreio do embate, tantas vezes cactos da mesma
espécie espinharam mortalmente seus companheiros. Dizem que um xiquexique, ao
ser covardemente espetado por outro, afirmou cambaleante: “Até tu, brutal
amigo!”.
O
mandacaru, agindo com terrível violência pelo seu tamanho, um verdadeiro Golias
em meio aos cactos pequenos, bastava descer seu braço cheio de espinhos
pontudos e a morte era certa aos que estavam ao redor. Contudo, não esperava que
o seu maior algoz fosse uma cabeça-de-frade que lutava rente ao chão. Alto
demais, o mandacaru não podia se proteger por baixo e se viu apunhalado bem no
seu calcanhar. E devastava tudo que estivesse embaixo quando desabava
mortalmente ferido.
Guerra terrível,
sangrenta demais, com cactos mortos se acumulando por todo lugar. Numa situação
assim, logicamente que todos os seres viventes das matas debandaram em
correria. Um preá, coitado, voltou para buscar um retrato da amada e caiu na
fúria de uma cansanção. Dizem que enlouqueceu com o pelo tomado de terríveis
afecções urticárias. E acabou com a própria vida ao se lançar na ponta de um
espinho de facheiro.
Voando por
cima, sorridente do alto, um urubu testemunhava contente aquela carnificina.
Esperava apenas o momento certo para se fartar dos restos mortais. Medroso,
covarde como ele só, precisava ter certeza que não encontraria perigo. Quando
tudo parecia apenas silenciosos escombros, ele juntou garfo e faca para o dia
seguinte. Então aconteceu o inesperado.
Durante a
noite caiu uma chuvarada sobre o campo de guerra e logo os corpos estendidos
começaram a gemer dando sinais de vida. Não demorou muito e já estavam
retomando forças, tomando seus lugares novamente na natureza. Tudo parecia
normal quando o sol, dois dias depois, voltou a brilhar. Apenas curativos
brancos nos braços dos cactos, e que tremulavam ao vento como bandeiras
brancas. De paz.
A paz. Se
há chuva no sertão sempre há paz pelos campos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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