Rangel Alves da
Costa*
Por ser
testemunha de todas as guerras no sertão, todas as batalhas cangaceiras no seu
solo, todas as vinditas pela terra no seu chão, todas as lutas pela
sobrevivência no seu leito árido, pedregoso e espinhento, o sol sertanejo se
encheu um dia e ainda transborda sangue cheirando a suor.
Desde
muito tempo que o chão sertanejo vem sendo constantemente demarcado nos seus
limites através de sangrentas disputas. Num passado mais distante, onde o
coronel latifundiário expandia suas posses a todo custo, aquele vizinho que
fosse empecilho à sua sede de ter sempre mais estava marcado para morrer. Ou
cedia ou não tinha saída.
Urubus e
outros animais carniceiros velaram muitos corpos que jaziam esquecidos nas
beiras das estradas, nos confins da mataria, embaixo das catingueiras, dos
cedros, dos umbuzeiros, mortos de tocaias, na falsidade, na mais abjeta
covardia. Pequenas cruzes de garranchos indicavam as inúmeras mortes ao
desalento, vidas que deixavam para trás viúvas empobrecidas e filhos sem nenhum
destino.
A fama de
um sertão violento correu mundo. Até hoje o citadino olha com reserva para o
sertanejo, sempre enxergando nele resquícios de um tempo de rixas, vinganças,
juras de morte, perseguições, desentendimentos baratos que causavam tragédias.
Nada disso mudou muito, pois a violência persiste desenfreada. Só que antes a
lide sangrenta era coisa séria, com evidente motivação para toda tragédia que houvesse.
Ao lado
das contendas envolvendo a honra das famílias, as lutas pelo poder político e
outros poderes, bem como as inimizades construídas desde outras gerações,
também se viam a violência barata, as brigas e mortes motivadas por embriaguez,
disputa de vizinhos, casos passionais, desavenças que começavam numa troca de
tapas e terminava na bala. Ainda assim muito diferente do que se vê hoje em
dia, quando a discórdia e a inimizade pautam a maioria das relações entre
conterrâneos.
O sangue
então jorrado não é mais na vermelhidão abjeta das tocaias e emboscadas, mas
numa covardia igualmente abominável, que é da violência importada dos grandes
centros urbanos. As dores, os sofrimentos, as mortes matadas e as mortes em
vida causadas pelas drogas, pelas armas potentes utilizadas nos roubos a
propriedades, nos assaltos à luz do dia, no medo espalhado por todo lugar.
Verdade é
que não há violência maior do que um sertanejo viver de porta fechada, tremendo
lá dentro, por medo do inimigo que pode chegar a qualquer instante. Geralmente
aposentado, recebendo a quantia minguada pra sobreviver, ainda assim será
visitado pelo vagabundo preguiçoso. Levam com violência todo o contado da subsistência
e ainda fazem graves ameaças. Quando não tiram também a vida.
Se hoje o
sangue que jorra na terra sertaneja é fruto da covardia, noutros tempos pode-se
afirmar que havia honra até em matar. Os pistoleiros, jagunços, capangas ou
homens do coronel, do político ou do latifundiário não saíam por aí atirando em
qualquer um, saqueando casas e propriedades, destruindo tudo que encontrasse
pela frente. Como naqueles tempos os poderosos viviam cercados de inimigos do
mesmo quilate, geralmente seus cabras serviam como escudo e proteção quando, aí
sim, se entregavam numa sagacidade sanguinária desmedida.
Rios e
mais rios de sangue encharcaram o sertão quando o cangaço se espalhou pelos
quatro cantos e fez suas vítimas. Primeiramente com os bandos primitivos de
audazes homens do seu tempo como Jesuíno Brilhante e Antonio Silvino, e depois
na voracidade e disposição de Lampião e seu bando. No cangaço residia a
violência justificada, a luta com claros objetivos, mas também exacerbadas
perseguições que vitimavam jovens e inocentes.
No auge do
cangaceirismo, lá pelos idos de 1930, tanto os cabras do Capitão Virgulino como
a polícia que vivia em seu encalço espalharam um terror desmedido, fazendo
todos os tipos de vítimas não só entre contendores, mas principalmente em meio
à população sertaneja. Nas cidades, lugarejos, fazendas e descampados o medo
rondava dia e noite, os gritos cortavam os silêncios amedrontados assim que
tomavam conhecimento da aproximação tanto dos cangaceiros como da volante.
Assim, na
terra árida que se pisa hoje sonhando que ali brotará alguma coisa, algum
alimento, algum flor nordestina, num tempo remoto tudo foi palco de guerras
infindáveis. Em cada canto e cada coito, em cada moita fechada e por trás dos
pés de pau, a morte rondava faceira, fria, já assassina sem apertar o gatilho.
Mas não somente isso, não somente quando a bala varava a vítima, mas também nos
lanhões rasgando os corpos dos que corriam desesperados, nos rostos cortados
pelos espinhos e galhos, no corpo inteiro marcado por uma vida cheirando a
sangue.
Disso tudo
só se salvou a história. Mas da violência barata de hoje, num banditismo
covarde escondido por trás de bandeiras modernas, nem a história, que mais
tarde cuida de relembrar o que grandiosamente existiu, guardará em si uma
recordação sequer de tamanha vileza e abjeção. E essa violência injustificada é
a que mais dói. Somente menor que a insuportável dor do adeus impiedosamente
imposto.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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