Rangel Alves da
Costa*
As
aventuras e estripulias do santo beberrão ganharam fama sertão adentro. Contudo,
segundo afirmam, era santidade um pouco diferente das demais, vez que santo de
pé de balcão e não somente de reza, igreja ou oratório. Sua estadia celestial
era outra.
E santo de
pé de balcão porque cultuado por todos aqueles bebedores de bares, bodegas e
botequins. O verdadeiro bebedor, conhecedor como ninguém da força de sua santidade
protetora, jamais ousa entornar uma dose sem antes oferecer um tiquinho ao
santo.
Talvez
apenas fruto da cultura e do misticismo sertanejo, e logo se espalhando pelos
quatro cantos, mas a verdade é que ninguém pode beber uma pinga sem antes
oferecer o primeiro gole ao danado do santo. Por isso mesmo que o copo é
levemente deitado até que um pouquinho da cachaça se derrame ao pé do balcão
onde ele está.
Sempre ao
pé do balcão e de boca aberta, ávida para beber, está o santo protetor do
apreciador da cachaça. E que ninguém se faça de besta de não oferecer. O não
oferecimento resultará em drásticas consequências, sendo a instantânea
embriaguez a primeira delas. Quem bebe e não oferece esquece o caminho de casa,
perde o dinheiro do bolso, tudo começa a dar errado.
Muita
gente logo se afasta daquele que não cumpre com sua obrigação. Temeroso,
conhecedor das estripulias do santo beberrão, o verdadeiro bebedor nem se
aproxima do esquecido nem aceita que este lhe ofereça dose. Pelo contrário,
olha logo desconfiado e procura outro amigo pra segredar que a coisa não vai
ser nada boa pro deslembrado.
Certa
feita apareceu um dizendo que não oferecia mais cachaça ao santo porque era até
pecado alimentar o vício duma santidade. E quem já viu dizer que o tal santo só
se prestasse a viver em pé de balcão, com a boca virada pra riba e só esperando
que chegue um e lhe derrame aguardente, foi o que afirmou o cabra desnaturado.
E coitado desse, pois ali mesmo no balcão se engasgou com um umbu que quase
bota as tripas pra fora. Acabou morrendo por causa disso.
Outro se
deu mal apenas pelo esquecimento. Era cumpridor de suas obrigações, mas chegou
afoito demais pra virar o copo e acabou se esquecendo de oferecer a primeira ao
divino bebedor. Pra sua desgraça, o vendedor serviu a cachaça trocada. Ao invés
de aguardente limpa, da boa, acabou bebendo da batizada, misturada com água,
daquela que o bodegueiro guardava para cachaceiro que não distinguia mais nada.
E sua perdição começou a partir desse dia.
Verdade é
que a maioria tudo fazia para não esquecer o compromisso com o do pé do balcão.
Mas um dia, logicamente que já fora do botequim, temendo que fosse escutado e
castigado, um cabra disse ao compadre que não entendia como o danado do santo
suportava beber tanta cachaça, principalmente em dia de feira. Ora, mais de
cinquenta chegavam ali e mais de quarenta ofereciam cachaça. E ele bebia todas.
O compadre
olhou para o outro sem saber o que responder, mas se saiu com qualquer coisa e
disse ter a máxima certeza que o danado do santo vivia trocando as pernas no pé
do balcão. E não sabia como ele saía dali e ainda subia na escada pro céu, que
é onde certamente morava. E todo dia chegar lá completamente bêbado e dizendo
que tinha sido embriagado pelos debaixo, por fulano e sicrano.
Ao ouvir
isso o cabra arregalou os olhos e avermelhou. Será? Então deu meia volta e
entrou novamente no botequim. Acompanhado do compadre, mandou descer duas
lapadas da branquinha e disse alto, olhando pro pé do balcão, que daquela vez não
ia oferecer cachaça alguma a um certo fofoqueiro que enchia a cara de pinga e
depois ia dizer lá em cima quem lhe havia embebedado.
O dono do
botequim, sem entender nada, perguntou se já estava de fogo antes de virar a
dose. Então o cabra disse mais: De agora em diante, quem quiser ser santo
cachaceiro que bote a mão no bolso e peça e pague sua dose. Não ofereço mais de
jeito nenhum. Bebo e ainda cuspo no chão, bem no lugar onde ele deve estar
esperando a pinga de boca aberta.
Mas nem
conseguiu despejar a dose goela adentro. Caiu pra trás arroxeado, sufocado, com
força apenas para implorar que despejassem uma garrafa de pinga ao pé do
balcão. E nunca mais ninguém ousou deixar de oferecer a cachaça do santo. Mas
ele não estava mais lá. Foi chamado à atenção e proibido de descer do céu
diretamente para o pé de balcão.
Assim ouvi
no sertão como absoluta verdade. Talvez o santo não esteja mais de boca aberta
esperando a pinga, mas é melhor não se fazer de besta de não homenageá-lo. Tome
quantas quiser, mas primeiro ofereça a dele.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário